Fugas - Viagens

  • Humberto Lopes
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Perak: à flor dos rios

Kuala Kangsar, cidade real

Afonso de Albuquerque, o conquistador de Malaca, tem um lugar nesta história. Existiria Kuala Kangsar — e, por extensão, estas linhas — se o capitão lusitano tivesse fracassado na tomada da cidade? Quanto do que no mundo sucede é tecido com invisíveis laços: o caso é que Mahmud Syah I, o sultão local, se viu forçado depois do infausto desenlace a abandonar Malaca e a buscar refúgio no outro lado do estreito, na vizinha ilha de Sumatra, a partir de onde, duas décadas depois, o mouro Coja Acém infligiria tantas dores de cabeça aos portugueses da Peregrinação. O que interessa ao viajante — e, porventura, ao leitor — é que um dos descendentes de Mahmud Syah I fundaria o sultanato de Johor, no Sul, face ao território onde hoje fica Singapura. O outro, o sultão Muzaffar Syah, instalou-se mais a norte e aí fundou, em 1528, nas margens do segundo maior rio da península malaia, o sultanato de Perak, actualmente uma monarquia constitucional, como todos os outros sultanatos federados na Malásia em 1957, há precisamente 60 anos.

Um arco assinala no centro da pequena cidade a sua condição de Royal Town. O cenário serve em certos fins de tarde para poses de pares de namorados (ou de semelhante ficção figurantes) metidos em vistosas fatiotas das quais se diz serem tradicionais. Por ali perto há restos arquitectónicos do tempo colonial, vestígios eminentemente britânicos, e um pouco mais adiante, na direcção do rio, um caminho entre jardins leva-nos até à zona ribeirinha, sombreada por palmeiras e habitada por barquinhos sonolentos. O Sungai Perak deve ter nesta etapa do seu curso quase uma meia milha de largura e hoje sente-se uma certa volúpia na correnteza: choveu com abundância nas montanhas nos últimos dias, as águas enovelam-se em torvelinho e arrastam ramagens, emaranhados de folhas largas e alguns troncos de árvores. Do outro lado do rio, a floresta desce quase até à margem e abraça o casario esparso. A montante, onde o rio desaparece entre margens cobertas por manchas de árvores altas, tudo é, ainda, verde. E por detrás do verde, outro verde, e por detrás deste, outro ainda, mais escuro, e lá ao fundo, na tela distante do horizonte, os primeiros traços, muito azuis, quase fundidos nas tintas do céu, das montanhas onde nasce o rio.

À volta da cidade a natureza é pródiga em percursos, como em quase toda a Malásia — uma das atraccões mais à mão é a reserva florestal de Ulu Kenas. Trilhos, espaços de lazer à beira-rio e uma cascata cantarolante, tudo ambientado num cenário de luxúria vegetal.

A condição de “cidade real” é, todavia, a que se faz mais presente nas andanças urbanas. Seguindo a margem do rio para montante vamos dar com o imenso palácio do sultão, o Istana Iskandariah, erguido no cimo de uma elevação e com vista para o Sungai Perak, como o desejou o sultão que o mandou edificar, no início do século XX. Príncipes e plebeus, palácios e casebres, tudo se faz aqui para que se plantem à flor dos rios.

A breve distância, junto à estradinha que ziguezagueia colina acima, está o Museu Real de Perak, o Istana Kenangan. À parte a colecção sobre a família real, o que soa mais apelativo para o forasteiro é a arquitectura deste pequeno palácio em madeira, construído com carácter provisório há quase um século para residência do sultão enquanto se construía o Iskandariah. As técnicas de edificação são as da tradição construtiva malaia: nem um único prego foi usado.

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