“Traz consigo o passaporte?”, pergunta Peter. Tínhamos partido há cerca de 15 minutos do Hotel Taubenkobel, nas margens do lago Neusiedl, na Áustria, e estávamos a aproximar-nos da fronteira com a Hungria. Vêem-se guardas a fiscalizar os carros que atravessam, mas nós temos sorte e passamos sem que nos mandem parar.
Peter Müller é sommelier no Taubenkobel e guia-nos neste passeio pela região, a província de Burgenland, na parte oriental da Áustria, com um objectivo: mostrar que as fronteiras e divisões criadas pelos homens não têm correspondente na natureza. De facto, é difícil perceber que mudámos de país. No lado húngaro a paisagem é em tudo semelhante à do lado austríaco – aliás, o próprio lago (património da UNESCO desde 2001) é partilhado entre os dois países.
“As uvas não conhecem fronteiras políticas”, está a dizer-nos Peter. E, nos dias em que ficamos em Taubenkobel, vamos percebendo que esta é uma forma de estar – uma ideia política, no fundo – que este charmoso hotel quer transmitir, nomeadamente através dos produtos que usa na cozinha e dos vinhos que serve.
“Não vivemos num mundo melhor, mas estamos felizes com a riqueza e o carácter distintivo da nossa região da Panónia”, lê-se no site do hotel. “Amamos as plantas que crescem aqui, os animais que vivem aqui, e que fazem parte da diversidade de culturas que constituem a Panónia e da soma de inúmeras influências.”
Numa região que mudou muitas vezes de mãos, que pertenceu ao Império Austro-Húngaro (1867-1918) e que se tornou parte da Áustria depois da I Guerra Mundial (foi a mais jovem província a integrar o país), há a tentativa de reivindicar uma identidade mais antiga, anterior a todas as guerras e disputas: a da Panónia, antiga província do Império Romano, que incluía parte das actuais Hungria, Áustria, Croácia, Sérvia, Eslovénia, Eslováquia e Bósnia-Herzegovina.
“A região definiu-se pela geografia e não pela política – essa veio com as pessoas”, continua Peter, enquanto guia. “Quando existia a Cortina de Ferro, não passávamos por aqui com a facilidade com que acabámos de passar.” Mesmo assim, nos últimos anos, com o medo dos refugiados e a tendência dos países para voltarem a fechar fronteiras, a situação tem-se tornado mais preocupante.
“O que o restaurante tenta comunicar é esta ideia de uma região que é um todo, independentemente da opinião de quem está no poder.” Peter reconhece que este é ainda um tema difícil, mas explica que Taubenkobel tem vindo a dar maior visibilidade a esta sua filosofia precisamente “como resultado da actual situação política”.
Interrompemos aqui a lição de história, já voltaremos à conversa com Peter, mas antes vamos entrar pela discreta porta de Taubenkobel e descobrir que mundo é este que aqui se esconde. Somos recebidos por Bárbara Eselböck, cujas gargalhadas felizes e vestidos floridos nos irão acompanhar durante toda a estadia, e pelo marido, Alain Weissgerber, de origem alsaciana, que é também o responsável pela cozinha deste hotel integrado na rede Relais & Chatêau.
Os dois estão desde há alguns anos à frente de Taubenkobel, uma aventura que começou com os pais de Bárbara, Walter Eselböck e Eveline Eselböck. É preciso dizer que estamos perante uma família muito pouco convencional e que, pelo menos pelas fotos (não os chegámos a conhecer pessoalmente) Walter e Eveline parecem irmãos de Bárbara e Alain.
Na apresentação que acompanha a sua fotografia no site, Eveline descreve-se como uma “embaixadora” da ideia de vinhos naturais. Quando, há mais de vinte anos, Taubenkobel nasceu, numa casa rural da pacata localidade de Schützen am Gebirge, a ideia de uma mulher sommelier, e ainda por cima especializada em vinhos naturais, era algo de muito inusitado para a conservadora Áustria. No entanto, foi precisamente esse o caminho que Eveline quis tomar.
E, com a comida de Walter e a carta de vinhos escolhidos por Eveline, Taubenkobel foi crescendo – chegando mesmo a conquistar duas estrelas Michelin. Mais recentemente, já com Alain responsável pela cozinha, foi considerado pela revista Forbes como The Coolest Place to Eat 2016.
Bárbara leva-nos a uma pequeníssima sala ao lado da recepção. “Quando os meus pais compraram a casa, aqui era o meu quarto e da minha irmã [Stephanie, que iremos conhecer mais tarde, produtora, com o marido, dos vinhos Gut Oggau]”. O espaço era mínimo, mas foi crescendo, sempre para a parte de trás – como as habitações com fachada para a rua principal são sempre mais caras nesta região, é habitual entrarmos numa casa que parece pequena e descobrirmos que, à medida que caminhamos em direcção às traseiras, ela desdobra-se em várias outras. Taubenkobel é assim.
Passamos a recepção e a entrada do restaurante, seguimos pelo jardim e vamos encontrando recantos, outras casinhas, um pequeno lago-piscina, espreguiçadeiras à sombra de grandes chapéus de palha, mesas de madeira entre árvores, mais um espaço com bancos cheios de almofadas para nos sentarmos.
Os quartos de Taubenkobel são espalhados por este jardim, que nos conduz também ao Greisselerei, o pequeno restaurante mais informal onde são também servidos os magníficos pequenos-almoços, que por si só justificariam uma estadia aqui – sumo detox verde, batido de frutos vermelhos, iogurte com frutos secos, carnes curadas, um delicioso fiambre artesanal com rábano ralado, um queijo excelente, tudo vindo de produtores locais, excepto o pão, feito no forno de lenha da casa. O ponto alto, no entanto, é um ovo escalfado e frito servido num anel de presunto frito.
É depois de um destes pequenos-almoços que saímos com Alain para apanhar ervas selvagens que ele vai usar no jantar dessa noite. Partimos no seu Mercedes azul clarinho de 1968 em direcção aos campos que rodeiam a aldeia. De um lado, milho, do outro, girassóis, e Alain pára o carro para nos mostrar onde, junto de um pequeno curso de água, se encontram ervas selvagens com sabores surpreendentes. Algumas, ele próprio não conhece e vai provando para ver de que forma as pode integrar no seu menu de degustação.
É altura de voltarmos a ouvir Peter, o sommelier que nos levou a passear de carro pela região. “No início, com Walter e Eveline, o foco era nos ingredientes que se podiam encontrar num raio de 100 quilómetros e no que se podia fazer com eles. Começaram, logo aí, a dizer que não precisávamos de usar produtos de luxo como o foie-gras ou o caviar. Agora vamos um pouco mais longe e dizemos ‘A nossa casa é a Europa’ e podemos ir buscar os melhores ingredientes à Hungria ou à Croácia. Há aqui uma mensagem política sob uma forma culinária.”
Peter chegou aqui pela primeira vez como cliente, mas, recorda, apaixonou-se pelo lugar de “cabeça, estômago e coração”. Há três anos que trabalha em Taubenkobel e muito do seu tempo é passado a visitar produtores de vinho em redor, a descobrir os vinhos mais interessantes e a conhecer pessoalmente cada um deles para depois poder contar melhor essas histórias a quem se senta à mesa do restaurante.
“O que temos na lista é tudo de pessoas que conhecemos e, na maior parte dos casos, biológicos e biodinâmicos. Estamos convencidos que o vinho enquanto produto natural está muito ligado às emoções. Não somos fundamentalistas, mas achamos que quando se trabalha com a natureza, não faz sentido lançar-lhe químicos.”
E se com os vinhos se tenta falar desta região da Panónia e quebrar ideias feitas, com a comida de Alain procura-se o mesmo. À noite sentamo-nos finalmente a uma mesa do Taubenkobel. A primeira coisa que nos apresentam é um saco de papel com milho, comida de pombos, em homenagem ao nome (Taubenkobel é um abrigo para pássaros), depois, como amuse bouche, pele de galinha com creme de aipo, uma espinha com pequenos pedaços de peixe e um iogurte de cabra rosado por flor de lírio.
Seguem-se vários pratos nos quais Alain trabalhou produtos locais: kohlrabi (planta da família das couves) servida em parte crua e em parte cozinhada no forno e colocada sob lâminas de truta; uma homenagem aos cogumelos locais que só existem duas semanas por ano, e que surgem a envolver uma espécie de bolo com sementes de papoila; alcachofra com caviar; carpa selvagem do lago Neusiedl crua, sobre gelo; beringela com ovo de codorniz e trufa da Ístria.
Depois, uma interrupção para um momento importante da refeição: o excelente pão saído do forno de lenha, de crosta estaladiça, pronto a receber várias manteigas, charcutarias artesanais e ervas selvagens apanhadas nessa manhã. Por fim, também do forno a lenha, vem o pato que nos tinha sido apresentado à mesa, ainda cru, no início da refeição, e que é servido sobre feno e trinchado à nossa frente.
A primeira sobremesa parecia de influência nórdica: folhas de espinafres com amêndoas verdes e sour cream. Mas a seguir a ela apareceram, com todo o aparato, bolos de creme na boa tradição da pastelaria vienense, e que, apesar de a aparência indicar o contrário, eram surpreendentemente leves. A refeição foi acompanhada por uma harmonização com vinhos da região e dos países em redor e também (só para ficarmos a conhecer) uma harmonização com bebidas sem álcool muitas delas feitas na casa por Peter.
Vale a pena, aliás, voltarmos ainda à conversa com ele, para o final desta história. “Não queremos ter sempre a mesma estrutura de refeição, queremos criar uma tensão própria. Porque é que se tem que ir numa constante elevação? Podemos ter um prato cheio de sabor e depois outro mais subtil, quase silencioso. Como numa peça musical, podemos ter uma orquestra e depois cairmos no silêncio, de onde se ergue um solo de violino.”
Taubenkobel não é um daqueles restaurantes (ou hotéis) que ficam no caminho de passagem de turistas e visitantes. É preciso querer ir até ele. Diz Peter: “Não importa de que lado se vem, tem que se guiar pelo menos meia hora e com essa viagem deixam-se muitas coisas para trás e quando se chega, o lugar, com a sua magia, envolve-nos.” Quem aqui vem sabe o que procura – ou pelo menos está disponível para o que vai encontrar. Que é, de muitas formas subtis e poéticas, a história de uma região, a Panónia, que, nos momentos em que isso se torna necessário, pode ser também uma mensagem política.
Jovens e biodinâmicos
Desde o tempo dos romanos que a região na fronteira entre a Áustria e a Hungria – actualmente a província de Burgenland – é conhecida pela produção de vinho. Hoje é cada vez mais famosa pelos vinhos naturais de produção biodinâmica que recuperam castas autóctones como a Blaukfränkisch ou a Furmint.
A família Gut Oggau
Fazer o vinho em que acreditavam foi a parte mais fácil para Stephanie e Eduard Tscheppe-Eselböck. O mais difícil, no início, em 2007, foi convencer as pessoas a comprá-lo. Hoje, dez anos depois, Gut Oggau é um dos mais famosos e apreciados vinhos biodinâmicos da Áustria.
“Lembro-me de estarmos numa prova em Viena e de as pessoas olharem para o nosso vinho, não filtrado, e pensarem ‘Que raio de vinho é este?’ Aceitamos que as pessoas não gostem do vinho, mas estavam mesmo a insultá-lo”, recorda Eduard. Stephanie abana a cabeça: “Eu tinha 25 anos, o Eduard 28, tínhamos colocado aqui todo o nosso amor, esforço, vida. Foi estranho.”
As reacções mais adversas foram dentro da Áustria e tinham a ver não só com o aspecto do vinho como com os rótulos, que são caras de membros de uma família fictícia, divididos em “avós”, “pais” e a “nova geração”. A ideia surgiu numa noite em que, depois de beberem um bocado, conta Stephanie, divertida, se lembraram de fazer corresponder a personalidade de cada vinho a uma pessoa. Os rótulos, que hoje distinguem estes vinhos em qualquer prateleira, “eram assustadores para algumas pessoas”. Mas quando a marca Gut Oggau foi descoberta por um importador na Dinamarca, começou a fazer o seu caminho de sucesso no cada vez mais vibrante universo dos vinhos naturais.
Sentamo-nos à frente de vários pratos de produtos locais, vegetais e ovos da quinta, charcutaria e queijos de produtores vizinhos, e abrimos uma garrafa de um dos vinhos da “nova geração”, o Atanasius, que, “apesar de ser excepcionalmente popular, tem algumas qualidades escondidas que o tornam ainda mais interessante” (a descrição de cada personalidade acompanha o vinho). Depois provaremos um Joschuari, “pai” de Atanasius, “personalidade carismática e complexa, que pensa pela sua própria cabeça”.
“Esta propriedade tem uma tradição muito antiga, de mais de 250 anos, na produção de vinho”, conta Eduard, que vem de uma família de produtores de vinho (Stephanie, filha dos fundadores do hotel e restaurante Taubenkobel, estudou fotografia). Compraram-na à antiga proprietária, que já ultrapassara os 90 anos e que se limitava a vender as uvas. A pouca intervenção nas vinhas facilitou-lhes a passagem para o sistema biodinâmico, do qual falam com paixão (têm a certificação Demeter).
Mostram-nos as caixas onde guardam o preparado feito a partir de estrume de vaca que é enterrado dentro de um corno para depois ser vaporizado sobre os solos. E explicam que este “não é um fertilizante, mas uma forma de criar mais actividade microbiológica na terra”, porque acreditam que não se deve incentivar as plantas a crescer demasiado. “O solo conta tantas histórias e depois temos tanta energia do cosmos, do sol. A única forma de pôr tudo isso numa garrafa é com os vinhos naturais. Não queremos ser provocatórios. A uva é harmonia.”
Meinklang, das vacas ao vinho
Pamhagen é uma localidade por onde passa a complexa história política da região. “Aqui antigamente era a Hungria”, conta Werner Michlits. “Depois da I Guerra, a nossa vila tornou-se austríaca, mas a parte sul ficou com a Hungria e as pessoas que tinham terras do lado húngaro podiam ir trabalhá-las.” Mais tarde, com a Cortina de Ferro, isso acabou. “Os russos queimaram as pontes e as pessoas de Pamhagen perderam as suas propriedades.”
Quando o Muro de Berlim caiu e as fronteiras se abriram novamente, os habitantes do lado húngaro não queriam fazer agricultura e venderam as suas terras a preços convidativos. Foi assim que os pais de Werner compraram a propriedade que vamos visitar com ele e onde a família (para além de Werner e da mulher, Angela, há ainda os dois irmãos dele, cada um com diferentes funções no projecto familiar) cria gado da raça Angus.
O objectivo é serem auto-suficientes em todo o ciclo de produção e, sendo biodinâmicos com certificação Demeter, usam o estrume do gado para as vinhas (que estão todas do lado austríaco), e, por outro lado, alimentam os animais com variedades de trigo mais antigas que estão a ajudar a recuperar na região. “São muito diferentes dos milhos de hoje, feitos de híbridos e que constituem uma alimentação artificial”, explica Werner.
Com este sistema, continua, “podemos criar um ciclo completamente sustentável, em que não estamos dependentes do exterior”. O problema é que “as pessoas perderam a confiança na natureza”, diz, enquanto nos mostra as vinhas, que nunca são podadas. Tal como no caso dos vinhos Gut Oggau, também os primeiros tempos da marca Meinklang (distingue-se pelas vacas nos rótulos) como biodinâmica foram mal compreendidos. “Riam-se de nós e era muito frustrante, porque isto era a nossa vida e as pessoas não davam valor.”
Mas agora são um grande produtor de referência da região e, tal como Eduard e Stephanie, também Werner não tem dúvidas sobre o caminho seguido. “A força da gravidade, por um lado, e a força da luz, por outro, são as mais importantes para a planta. É tudo ao contrário do que estudei em enologia, mas não é aldrabice esotérica, há de facto uma ordem natural em tudo isto.”
A adega de Claus Preisinger
Estamos na varanda da impressionante adega que Claus Preisinger construiu em Gols e em frente temos uma vinha. Se a observarmos com alguma atenção, vemos que as fileiras são distintas umas das outras e que o próprio solo que as rodeia é diferente. A explicação é simples: a divisão das terras que existe na zona significa que cada produtor pode ter apenas duas ou três fileiras aqui, outras duas ou três noutro terreno, no meio de vinhas de outros produtores – geralmente convencionais, o que traz vários problemas.
Mas, para Claus, essa diversidade tem vantagens. “Tenho 22 hectares certificados, não trabalho nas planícies, apenas nas encostas, e em cinco localidades, é um puzzle de vinhas diferentes, castas, altitudes, tipos de solo, é como estar num meio de um grande recreio a brincar com estas coisas.”
Ao contrário de outros, não vem de uma família de produtores de vinho, mas fez a sua primeira vindima com vinte anos e não parou desde então. A certa altura, trabalhava em várias adegas diferentes, velhos celeiros ou estábulos adaptados, e pensou que precisava de concentrar tudo num espaço único. Assim nasceu esta adega de arquitectura moderna. “Aqui posso fazer tudo o que quero, correr riscos, experimentar. Até porque nenhuma vindima é como a anterior.”
Decidiu tornar-se biodinâmico “na busca pela qualidade e sustentabilidade dos vinhos” e porque “quando se começa a ler sobre estas coisas, no final é a única solução”. Além disso, “é um caminho muito espiritual mas também muito lógico” e que permite obter “fruta muito mais estável”. As uvas são sempre fermentadas com as películas, para garantir maior estabilidade e longevidade ao vinho (é isso que explica o tom mais alaranjado que alguns têm).
As ânforas de barro, com as quais também trabalha apesar de não serem tradicionais na região, servem o mesmo propósito: permitir que o vinho evolua, sem interferência da madeira e em contacto com o oxigénio permitido pela porosidade do barro.
O objectivo, tal como o de todos os outros produtores com quem falámos no Burgenland, é o de chegar a vinhos que traduzam da forma mais fiel possível a natureza de onde vêm. Para despedida provamos um dos seus vinhos, Kalkundkiesel e, para que o possamos entender, Claus dá-nos para as mãos as pedras que dominam nos terrenos de onde vêm as uvas: calcário e seixos. “A busca da identidade dos vinhos de Burgenland está nas mãos da minha geração, está tudo a acontecer agora”, diz.
Wenzel, o avô e os russos
Quando a povoação de Rust, no Burgenland, ficou sob ocupação russa, a seguir à II Guerra Mundial, o avô de Michael Wenzel pensou imediatamente que era preciso esconder o vinho. Os Wenzel são provavelmente a mais antiga família produtora de vinho da região – gostam de dizer que têm “vinhos feitos por mãos locais desde 1647” – e o avô queria proteger as melhores colheitas da primeira metade do século XX.
“Escavou as paredes de pedra da adega e enfiou aí os vinhos de 1902, 1921, 1934, que foi a colheita do século”, enumera Michael, mostrando-nos a parede esburacada. O esforço revelou-se inútil: os russos descobriram os vinhos e, claro, beberam-nos todos. O buraco na parede ficou, para contar a história.
A adega da família Wenzel (que, infelizmente, não está aberta a visitas públicas) cheira a humidade e guarda garrafas antigas, cobertas de pó, mas nenhuma delas é anterior a 1958, ano em que a produção de vinho recomeçou, depois da partida dos soviéticos. “O meu avô viveu o período mais difícil, passou por duas guerras mundiais, a grande depressão da década de 20. Mas tinha muita iniciativa e foi ele o primeiro a decidir engarrafar o vinho, que antes era vendido a granel.”
A queda da Cortina de Ferro foi, para ele, uma excelente notícia. Viu aí uma oportunidade para recuperar as antigas castas da região, como a Furmint, que continuam a plantar-se do lado húngaro mas tinham desaparecido completamente do lado austríaco. “Quando, em meados dos anos 80, com a política de Gorbatchov, se tornou mais fácil entrar na Hungria, o meu pai conseguiu fazer passar as primeiras videiras de Furmint pela fronteira. Levou com ele o meu avô, que já tinha 82 anos mas falava húngaro e distraiu os guardas, que acabaram por não revistar o carro.”
Foi assim que se deu o regresso daquela que tinha sido, no século XIX, a grande casta da região. Michael – que é já a 12.ª geração dos Wenzel a fazer vinho e o responsável pela passagem da produção para o modo biológico (no futuro será biodinâmica, mas, diz, isso exige tempo) – quer hoje perceber como é que o terroir influencia realmente um vinho.
“Respeito a natureza e não quero interferir. A grande arte está em não tocar. O que se vê na pedra deve sentir-se no vinho”, declara, dando-nos a provar dois vinhos feitos a partir de Furmint, o Vogelsang, de um solo rico em quartzo cinzento, e o Garden of Eden, de um solo com quartzo vermelho, e pedindo-nos para estarmos atentos às diferenças. “No início foi muito difícil, ninguém estava interessado em castas autóctones, mas eu nunca desisti, sempre acreditei na Furmint. Agora não tenho o suficiente para a procura. Mas demorou vinte anos a chegar aqui.”
O rei dos tomates
Erich Stekovics é conhecido na Áustria, e muito para além das fronteiras deste país, como o “rei do tomate”. Em quatro hectares tem plantadas 3200 variedades de tomates, todas elas antigas (tem também 600 variedades de malaguetas e pimentos) no que entende ser um esforço para preservar a biodiversidade.
“Não trabalhamos com híbridos, plantamos tudo no campo, não usamos estufas”, explica, enquanto nos leva a percorrer o campo, acompanhado pela mulher, Priska.
Não se vê uma única estaca, todos os tomateiros crescem rentes ao solo, aproveitando o generoso espaço livre entre uns e outros. O clima ameno em torno do lago Neusiedl, junto à fronteira entre a Áustria e a Hungria, é ideal para os tomateiros, que não são regados. “Não precisam de água, são plantas com oito mil anos, que trazem muita informação dos pais, avós e bisavós, que cada uma passa para a geração seguinte”, diz Erich. “Eu é que posso aprender com a planta, não é ela que vai aprender comigo.”
Erich Stekovics – que é fornecedor do restaurante de Taubenkel – organiza visitas guiadas diárias de cerca de uma hora e meia aos seus tomateiros. Aí explica todos os detalhes da produção e dá a provar muitas destas variedades. Os contactos para as visitas estão no site www.stekovics.at, mas é aconselhável marcar com alguma antecedência porque a procura é muita. No local vendem-se também vários produtos feitos à base de tomate.
A Fugas viajou a convite do hotel/restaurante Taubenkobel