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Um banho de lama e sal em Castro Marim

Por Alexandra Prado Coelho ,

Os fenícios e os romanos andaram por aqui a explorar o sal para as conservas de alimentos. Mas na segunda metade do século XX as salinas de Castro Marim pareciam condenadas a morrer. Agora renasceram e uma delas até se transformou num “spa natural” com aplicações de argila e banhos flutuantes.

Quem, este Verão, passa na estrada que vai de Castro Marim para Vila Real de Santo António, no Algarve, não pode deixar de reparar no aumento do movimento dos carros que, a meio do percurso, mudam de direcção e avançam em direcção às salinas.

A estrada é de terra e, à primeira vista, não se percebe exactamente o que atrai tantos carros. Vemos apenas, de um lado e do outro, as salinas com a sua água leitosa e, ao fundo, uma estrutura de apoio em madeira. Mas é precisamente para aí que as pessoas se dirigem. Aproximamo-nos e vemos um casal a caminhar descontraidamente na nossa direcção. A única coisa fora do vulgar é o facto de estarem de fato-de-banho e totalmente cobertos por uma argila cinzenta. Vêm do “spa natural” que este ano nasceu na Salina Barquinha.

Chegamos sem saber exactamente como funciona o processo mas um rapaz aproxima-se para nos explicar. Tal como acontece no mar Morto, em Israel, a água aqui tem, devido à evaporação, uma alta concentração de sal (cerca de 200 gramas de sais por litro, enquanto no mar é de 35 gramas e para se obter sal tem que se chegar aos 350), o que permite que quem nela entra fique a boiar sem conseguir ir ao fundo. E esta é a primeira fase do nosso “tratamento”.

Entramos. Podemos levar uma bóia para apoiar o pescoço e é assim que ficamos, flutuando na água morna, tentando por vezes voltarmo-nos, com movimentos pouco coordenados — um dos grandes cuidados a ter é evitar que a água chegue aos nossos olhos — e a vaga impressão de que fazemos lembrar um sapo.

Mas a pele começa imediatamente a dar sinal dos efeitos do sal que, explicam-nos, funciona como esfoliante natural. À nossa volta, por entre as salinas, passeiam-se pessoas com os corpos cobertos de argila. Já lá chegaremos. As instruções que recebemos foram para ficarmos não mais do que meia hora imersos na água salgada e depois, sim, sairmos e colocarmos a argila, que está num recipiente junto à “piscina”, cobrindo todo o corpo (mais uma vez, cuidado com os olhos).

A argila começa a secar e, no processo, vai procurar humidade. Encontra-a na nossa pele e é assim que a limpa de impurezas, explica-nos o mesmo rapaz que nos recebeu à chegada. Nesta fase o tempo aconselhado é de vinte minutos, após os quais devemos mergulhar outra vez na salina-piscina e limpar a argila do corpo. Quanto ao rosto, o mais aconselhável é lavá-lo apenas nos chuveiros que existem junto ao pequeno bar de apoio ao spa e onde se pode também beber um sumo ou um chá ou comer alguma coisa. Ou ainda comprar um pacote de sal ou de flor de sal.

Luís Horta Correia, um dos proprietários da Salina Barquinha — através da empresa Água-Mãe, criada em 2008 — sublinha que o sal que aqui se produz conserva toda a riqueza do mar porque resulta unicamente da acção do sol e do vento que provoca a evaporação da água e faz surgir os cristais ricos não apenas em sódio, mas noutros minerais, magnésio, cálcio, potássio, ferro, zinco, que existem na água do mar. É isto que o diferencia do sal refinado, industrial, que “é constituído quase exclusivamente por cloreto de sódio”.

E a argila? Encontra-se no fundo e nas paredes destas “piscinas” onde entramos (os nossos pés escorregam inevitavelmente nela antes de o sal nos pôr a boiar). Também a argila foi ficando, ao longo dos tempos, saturada destes minerais vindos do mar e que aqui se concentram.

Isto não é um spa de luxo

A história das salinas de Castro Marim começou há muito. Há referências à produção de sal marinho desde o século VIII a.C. quando os fenícios introduziram a indústria das conservas de peixe, que era salgado em tanques. Mas as salinas só ganharam o aspecto que têm hoje, divididas em talhões rectangulares, com a chegada dos romanos, que usavam o sal para fazer o na altura célebre molho de peixe a que chamavam garum. A importância do sal era tão grande que os soldados do Exército romano recebiam rações de sal às quais se chamava salarium argentum — terá nascido aí a palavra salário.

Não se sabe se a Salina Barquinha é tão antiga, o que se sabe foi que esteve parada perto de 40 anos, até a Água-Mãe a recuperar, há quatro anos. Aquela que fora a grande indústria da região entrara num profundo declínio. “No ano 2000 havia em Castro Marim dois salineiros a trabalhar”, recorda Luís Correia. “Antes, a produção de sal era dirigida para a pesca, e as conservas de peixe, presunto, queijos. Quando a pesca foi abaixo e as conserveiras começaram a fechar, o sal foi atrás.”

A recuperação começou há poucos anos e de forma tímida. Neste momento, calcula Luís Correia, das 70 salinas existentes há 16 em funcionamento “e todos os anos tem-se recuperado pelo menos uma”. Mas a tarefa é complexa. Com as longas paragens, as salinas acumulam terra e argilas e para as limpar não podem ser usadas máquinas. Isto significa que, por exemplo, a Salina Barquinha demorou um ano a ser recuperada.

A ideia da exploração turística veio mais tarde e tem muito a ver com a vontade de Luís Correia de mostrar o que são as salinas e a arte de trabalhar o sal. Ao mesmo tempo foi percebendo que existia um forte potencial nas argilas — no início, confessa, achou que as pessoas não iam gostar da ideia de cobrir o corpo com a lama escura, mas a reacção foi exactamente a contrária. E depois de uma visita ao mar Morto pensou que poderia introduzir também os banhos minerais.

Nem todas as salinas têm no fundo este tipo de argila que torna o chão impermeável, explica. As de Setúbal, por exemplo, têm um solo arenoso. “Aqui era o antigo leito do oceano, o delta do Guadiana, e esta zona estava toda alagada.” Outra vantagem de Castro Marim é que “sempre foi terra de salineiros” e o saber não se perdeu. Quem hoje trabalha recuperando salinas pode ainda contar com a ajuda e os conhecimentos dos velhos salineiros.

Ao contrário de outras zonas do país, onde as salinas são de grande dimensão, aqui são pequenos lotes. Eram, diz Luís Horta, “uma espécie de hortas das pessoas, porque, apesar da exploração do sal ser um privilégio real, aqui o rei D. Dinis autorizou qualquer pessoa a fazer uma salina”. O resultado é “uma lógica de organização da propriedade que ajudou a preservar esta cultura entre as famílias.”

Assim, hoje, no meio das figuras pintadas de preto que deambulam pelas salinas e das que boiam em posições cómicas, continua a fazer-se aqui o trabalho do sal nos restantes talhões cristalizadores. Aí, no fundo, a argila, que nunca é mexida para não se misturar com o sal, pode atingir temperaturas de 50 graus — é esse calor, aliás, o principal responsável pela evaporação da água. A flor de sal, a que os antigos chamavam “coalho” e que não era sequer comercializada, é apanhada à superfície e só depois se chega ao sal.

Quem quiser conhecer o processo e passear na Reserva Natural do Sapal de Castro Marim pode fazê-lo também através da Salina Barquinha (as visitas guiadas de uma hora custam 10 euros por pessoa ou 5 euros se for um grupo), que oferece ainda a possibilidade de ser salineiro por um dia (1h30m, 15 euros por pessoa).

Uma sessão de banho flutuante e de argilas custa 10 euros por pessoa, mas o preço baixa também se se tratar de um grupo. Há ainda a possibilidade de (por reserva) fazer aulas de ioga ou meditação e massagens. “Não quisemos fazer um spa de luxo”, avisa Luís Correia. Mas, arriscamos nós, se os romanos ainda por aqui andassem, iam certamente gostar deste prazer de Verão.

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