Não fomos nós a dizê-lo. Foi mesmo o presidente da Irmandade dos Clérigos, Américo Aguiar, numa entrevista a um jornal, há quase dois anos, quando apresentou ao mundo a intenção de submeter a Igreja dos Cérigos a uma intervenção de reabilitação profunda. Dizia ele que, até então, não era preciso fazer nada. “Nadinha”, repetia. Mesmo assim, os turistas iam bater-lhes à porta, queriam entrar, reclamavam por fechar tão cedo (que, no Verão, às sete da tarde ainda o sol vai alto), apareciam porque queriam visitar a torre desenhada por Nicolau Nasoni e que, merecidamente, se tornou um dos símbolos da cidade do Porto. “Faz parte de todos os roteiros da cidade”, explicava Américo Aguiar, consciente de que o edifício oitocentista é o melhor miradouro do Porto, e que, lá está, mesmo que a Irmandade nada fizesse para isso, nestes últimos anos tem sofrido um número crescente de visitantes. Em 2012, a Torre dos Clérigos teve cerca de 150 mil visitantes, enquanto que em 2013 ultrapassou os 420 mil — acima dos 250 mil que eram o objectivo.
Mas, se havia a noção de que não foi preciso fazer nada para atrair os turistas, a Irmandade também percebeu que seria melhor fazer alguma coisa para que a igreja, primeiro, e todo o edifício, depois, ficasse com mais do que uma cara lavada. E assumiu de forma clara que queria fazer alguma coisa para que, mais do que um espaço religioso, aquele monumento (declarado Monumento Nacional em 1910) teria um forte contributo para dar ao roteiro turístico.
A empreitada na igreja foi de monta — 2,6 milhões de euros, comparticipados em 1,7 milhões pelo Quadro de Referência Estratégica Nacional (QREN)). Os 800 mil euros que couberam à Irmandade dos Clérigos foram obtidos com recurso a financiamento do programa Jessica, também ele comunitário. Exactamente 252 anos após a inauguração oficial do edifício, em Dezembro passado, a Igreja dos Clérigos reabriu ao público com pompa e circunstância. E o clima de festa mantém-se até aos dias de hoje, que isto de brindar os presentes (portuenses e nem por isso) com concertos diários no órgão de tubos da igreja não pode ser menos do que encarado como uma celebração contínua.
Mas deixemos a Igreja e vamos à torre, que é por ela que os turistas batem à porta dos Clérigos — e é também por ela que aqui estamos. Eu, pecadora, me confesso, que perdi a conta aos dias de vida que já levo passados no Porto, e chegam-me dois dedos de uma mão para contar as vezes que me atrevi a subir lá acima. Fi-lo a primeira vez aos 17 anos, e para acompanhar um bando de primos emigrados em França. E subi agora a segunda, tendo tido o privilégio de integrar o grupo que marcou a estreia das visitas nocturnas ao ex-líbris da cidade.
Desde há cerca de um mês que é possível subir aos Clérigos para assistir a um pôr do sol — basta agendar a visita das 19h15 — ou para ouvir o barulho das luzes e ver o frenesim das cores à noite — há visitas a começar às 21h30 e às 22h30. Todas elas têm uma duração estimada de uma hora — e descansem os menos afoitos que não é preciso tanto tempo para subir os 270 degraus. Os intervalos duram uma hora porque a entrada compreende uma visita guiada à igreja e aos novos espaços museológicos que o edifício ganhou com as obras de reabilitação. As visitas são feitas em grupos mínimos de 25 pessoas — foi a fórmula encontrada pela Irmandade para garantir condições mínimas de rentabilidade, mas também de segurança, evitando franquear a subida a quem não tenha a experiência programada e se lembre de fazer um prolongamento da movida (que se concentra ali a dois passos, na zona das Galerias de Paris e Cândido dos Reis) a mais de 70 metros do nível do solo. Organizar um grupo é mais fácil do que parece — e as empresas de turismo estão aí para ajudar.
Uma rica igreja
A visita guiada começa com explicações detalhadas da importância que a Igreja e a Torre dos Clérigos (que foram construídas assim mesmo, por esta ordem) tiveram, e têm, na cidade. No interior da igreja, e enquanto olhamos para a sua estrutura elíptica que a torna única no país, ouvimos as explicações acerca das funções ocupadas por esta torre que fica afastada da igreja que lhe dá o nome, e de como ela serviu para orientar os navegadores à entrada da barra do Douro. Sim, que a Torre serviu quase de farol, apesar de estar fisicamente afastada do rio e do mar — não foi à toa que mereceu o epíteto de edifício mais alto de Portugal até há relativamente pouco tempo. Foi por essa mesma circunstância que serviu de emissor de telégrafo e, mais curioso ainda, de relógio oficial da cidade, sem que ninguém precisasse de lhe olhar para os ponteiros. A meridiana, uma engenhoca composta por uma pistola que era accionada pela luz solar, disparava diariamente às 12h e dava sinal aos comerciantes que estava na hora de encerrar as portas. Essa meridiana é um dos objectos que será possível apreciar durante a visita ao museu, mas antes disso ainda vale a pena ficar pela igreja um bom bocado. Os Clérigos são um ex-líbris da cidade mas também são um símbolo do barroco e da arquitectura que o italiano Nicolau Nasoni imprimiu na cidade. Não há pressas para apreciar a opulência da talha dourada, os pormenores talhados na pedra (o altar principal é ainda mais trabalhado, no estilo rococó), e a riqueza das “Misericórdias”, as cadeiras de encosto alto que estão junto ao altar principal e que servia para os irmãos “descansarem de pé” enquanto assistiam aos serviços religiosos, talhadas à mão na rica madeira de jacarandá. E fazer apostas sobre se um dos corpos encontrados na cripta, bem por debaixo do altar-mor, encontrados casualmente depois da intervenção, será ou não do arquitecto Nicolau Nasoni.
Depois da igreja, e ainda antes da subida à Torre, há três novos pisos a visitar. Depois de dois séculos sempre fechadas ao acesso do público, as áreas onde funcionaram residências e serviços administrativos ligados ao universo eclesiástico, como a enfermaria da irmandade, foram agora convertidos em espaços museológicos. No primeiro piso, a exposição é dedicada à história da irmandade dos Clérigos e permite adivinhar como era gerida uma das mais importantes organizações portuenses do século XVIII. No grupo de visitantes havia um punhado de crianças, munidas da sua proverbial curiosidade e franqueza; e o elemento a que acharam mais piada foi à Sala da Burra, sendo que a Burra não era um animal, mas sim um impressionante e pesado cofre (em versão baú), datado de 1763 e que é dotado de três fechaduras. No século XVIII e XIX, para o abrir era obrigatório estarem três chaves a ser rodadas em simultâneo: uma pelo presidente da Irmandade, outra pelo vice-presidente e outra pelo secretário. Se os mais novos gostaram da Burra, nos mais velhos não houve quem não se impressionasse com a inusitada janela ao fundo da antiga “enfermaria”, que dá uma belíssima perspectiva para o interior da igreja, mesmo por detrás da imagem da padroeira que está no altar-mor.
Num outro piso,as salas são dedicadas a Nasoni e aos mestres pedreiros que com ele construíram a igreja e a torre, sendo possível conhecer o estirador onde o arquitecto italiano deve ter passado muitas horas de trabalho. Por fim, no terceiro piso, a Irmandade aproveitou para expor uma colecção doada por um benemérito, António Manuel Cipriano de Miranda. O Museu do Cristo, assim se chama a exposição, é composto por cerca de 400 exemplares de Cristos, que revelam as várias formas de o representar em vários lugares do mundo e usando vários suportes ( escultura, ourivesaria, pintura, tapeçaria). Para uma criança deve ser impressionante entrar numa sala escurecida e ver tanta imagens de Cristos pregados na parede — mas a mesma criança que, ao ouvir a descrição de uma pintura reparou que nela constava uma serpente, ficou a repetir uns bons minutos “eu não gosto de cobras”, provou-nos que não. Uma sala com 400 Cristos não dá pesadelos a ninguém.
Findas as visitas à exposição e à igreja (e já depois de termos passado pelo Coro Alto para, também daí, termos uma belíssima perspectiva da riqueza e dos pormenores do espaço) é chegada, então, a altura de marchar quase 200 degraus (não nos enganámos — é que, com a entrada pelo museu, e a existência de um elevador até ao quarto andar, poupámos bastantes lanços de escadas) para finalmente ir apreciar a cidade do seu ponto mais alto.
Degraus acima, em caracol, mais ou menos apertados, o esforço físico vai sendo compensado pelas luzes que se começam a perscrutar cada vez mais lá em baixo. Uma janela aqui, uma outra acima, muitas voltas a girar para o mesmo lado, um pátio com sinos, mais uns degraus e uma outra janela, e de repente, já chegámos. Afinal não custa nada. E a paisagem lá em cima vale tudo. No cimo da torre não dá para juntar o grupo todo para ouvir explicações — cada qual escolhe o ângulo, de entre os 360 graus que ali são oferecidos para contemplar a cidade. Para quem sentir muita falta das palavras do guia, pode descansar que diante dos olhos terá legendas, isto é, placas informativas a ajudar a localizar alguns dos pontos chave da cidade. Aliados e Câmara do Porto, Santo Ildefonso, Batalha, Sé do Porto e Paço Episcopal, Ponte Luiz I e Mosteiro da Serra do Pilar, Casario da Ribeira e caves de Gaia, e todo um Douro a espelhar as luzes. Não é preciso cantar Rui Veloso para apreciar o casario a estender-se até ao mar. Fica a certeza de que vale a pena usar os dedos das mãos mais vezes para contar as investidas ao cimo da Torre. E a promessa de que ainda havemos de voltar cá acima no horário sunset. Temos até ao fim do Verão para isso.
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