Fugas - restaurantes e bares

  • Nelson Garrido
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''É mais difícil encontrar uma boa sardinha que uma boa lata de caviar''

Por Alexandra Prado Coelho ,

André Silva, o chef que sucedeu a Vítor Matos no Largo do Paço, restaurante estrela Michelin em Amarante, quer romper com o passado e criar um estilo próprio e profundamente português. “Não nasci a comer foie-gras", diz.

 Estamos sentados na recém-renovada sala do restaurante Largo do Paço, na Casa da Calçada Relais & Châteaux, em Amarante, a observar os veludos, damascos e sedas de cores fortes, os quadros de grossas molduras trabalhadas, os castiçais com aves exóticas e os jarrões com flores, trabalho da decoradora Isabel Rente, e ouvindo a discreta música de piano ao fundo, quando nos chega à mesa… um vaso com terra e dois nabos. “É a nossa saudação”, diz o empregado, colocando-o à nossa frente. 

E é assim, com humor e personalidade, que André Silva se apresenta. Se é verdade que o Largo do Paço ostenta, com orgulho, uma estrela Michelin, o chef que sucedeu a Vítor Matos quando este saiu no final do Verão passado (para entretanto abrir o seu Antiqvvm, no Porto) não entende que esta lhe traga quaisquer limitações à criatividade. Pelo contrário. “É mais difícil encontrar uma boa sardinha que uma boa lata de caviar” é uma frase que vai repetir durante a nossa conversa no final do jantar. Mas, antes disso, vamos ver o que é este vaso com nabos. 

O nabo mais pequeno é verdadeiro, enquanto o maior é feito de bacalhau e batata. A seguir vem, já com o efeito do gelo seco a criar um fumo fresco pela mesa, um ouriço-do-mar com espuma de ouriço, zamborinha (uma vieira mais pequena), lingueirão, percebes e ovas de truta e, logo após este mar na mesa, o contraste com um cone com creme de boletos, foie-gras e espuma de vinho do Porto. 

E estávamos apenas nas saudações. A entrada, revelando o gosto do chef por usar vários elementos num prato, criando um equilíbrio de sabores através de aproximações e contrastes, é “Foie-gras e maracujá” e cruza figos com manjericão, ruibarbo e bolo de especiarias. Segue-se o “Bacalhau e as suas ovas”, prato que é uma desconstrução (gostaríamos de poder evitar esta palavra, mas neste caso é difícil explicá-lo de outra maneira) de uma salada de bacalhau, com o bacalhau confitado em salsa, um bombom de azeitona preta, uma esmagada de grão de bico, um molho de pimento vermelho, um sorvete de cebola e uma espuma de salsa, acompanhado por umas finíssimas tostas de broa de milho. Estão lá todos os sabores, separados no prato, mas juntos depois na boca.

“Não deixa de ser aquilo que vulgarmente conhecemos como punheta de bacalhau”, explica André Silva. “Tento ir buscar muito aos sabores da infância. Não nasci a comerfoie, não nasci a comer caviar ou lavagante, muito pelo contrário, venho de uma família bastante humilde, comia caras de bacalhau, rabos de bacalhau, supostamente os produtos que eram menos valorizados. Por isso é que os valorizo bastante.”

Na nova carta do Largo do Paço, que está a preparar e que será introduzida em breve, o chef pretende usar ainda mais produtos deste tipo. “Não os considero menos nobres. Não é o preço que faz um produto nobre, é a qualidade. O preço limita-se a destacar o produto. Estou, por exemplo, a tentar ter um prato que leve patas de galinha, uma coisa que é olhada como um desperdício mas que eu quando era mais novo comia e de que gostava.”

É então que vem à conversa a estrela Michelin e o que os clientes esperam de um restaurante com esta distinção. “Eu defendo que a nossa cozinha marca, mas marca principalmente pelo palato. O lado visual, tudo bem, é importante, mas é um bocado como no filme Ratatouille, temos que nos identificar com o que estamos a comer. [Na alta cozinha], das duas, uma: ou partimos para um mundo completamente novo, de sabores novos, com os quais não estamos à espera de nos identificar, ou então tentamos impressionar com as nossas raízes, o nosso receituário, que é tão vasto. E aí, sim, corremos riscos, porque a pessoa vai provar uns papos de anjo e se na infância os comeu, vai fazer a comparação. É por isso que o melhor elogio que nos podem fazer é dizer que o prato os transportou para a infância ou então que são os melhores papos de anjo que comeu na vida. Isso significa que estamos no bom caminho.”

Não há nada no guia Michelin “que diga que tenho que ter foie ou caviar”, sublinha. “Por muito que queira nunca vou competir com chefs franceses a fazer foie, ou conseguir melhores trufas que os italianos. Tento impressionar os clientes com os produtos que temos cá. Um bacalhau destes, eles não vão encontrar em mais lado nenhum, porque é uma coisa nossa e é precisamente isso que os impressiona.” Se calhar, um inspector Michelin que venha jantar ao Largo do Paço “acabou de comer caviar ao almoço”, por isso “o que nos marca é sermos diferentes e audazes”.

Vamos então continuar a refeição para perceber melhor o caminho que André Silva aqui está a percorrer e que, como ele próprio diz, pretende fazer uma ruptura com a herança que recebeu de Vítor Matos — não porque a rejeite, até porque foi com ele que chegou à Casa da Calçada, em 2010, mas para evitar “a tentação da comparação”. Porque, diz, a sua cozinha “não é melhor nem pior, é diferente.”

O prato que se segue chama-se “Polvo e a batata-doce” e volta a trazer vários elementos, o polvo muito macio, marinado em molho teriyaki, puré de batata doce, emulsão de ouriço do mar, daikon-melancia (uma variedade de rábano), ovas de truta, chips de batata doce e ervilha lágrima. O chef confessa que gosta bastante mais de trabalhar o peixe e o marisco do que a carne. “O peixe e o marisco nunca enganam, ou são frescos e de qualidade, ou não.”

Talvez por isso, o prato de carne que apresenta nesta selecção seja “Vitela de leite e os mexilhões”, uma mistura entre terra e mar que, diz, tem agradado muito, inclusivamente aos clientes estrangeiros, que são a maioria (embora, sublinhe, o número de portugueses esteja a aumentar, um facto que o deixa muito satisfeito). 

A refeição termina com uma sobremesa da chef pasteleira Lisete Coelho, que também joga, para os portugueses, nesse reconhecimento de sabores familiares — “Papos de anjo e Queijo da Serra”, com marmelo, Vinho do Porto, abóbora e pinhões, servidos sobre um conjunto de quatro azulejos que são montados na mesa à nossa frente. 

Todo o menu foi acompanhado pelo trabalho atento do escanção Sérgio Lima Macedo, que apresentou os vinhos, explicando, por exemplo, por que é que a Edição Terroir da Quinta da Calçada oferece um Alvarinho com características muito diferentes dos alvarinhos mais tropicais de Monção e Melgaço, dada a diferença, nomeadamente de solos, entre as regiões: “Aqui temos pedra rolada, granito e solo argilo-calcário.”

E contou-nos como neste momento grande parte da vinha está a ser replantada, dado que a produção das vinhas velhas é já muito pequena (embora algumas destas ainda se mantenham). As vinhas mais antigas foram trazidas em 1917 pelo histórico proprietário António do Lago Cerqueira. Construída inicialmente no século XVI e base dos comandos aliados inglês e português durante as Campanhas Napoleónicas, a Casa da Calçada foi comprada pela família Lago Cerqueira depois de na luta contra os franceses ter desempenhado um papel importante na defesa de Amarante, que lhe custou, contudo, ter ficado destruída num incêndio. 

António do Lago Cerqueira, que viria a ser uma figura de destaque no mundo político da I República, viveu durante um período exilado em França e foi de lá que, quando regressou, trouxe informação sobre novas técnicas de plantação de vinhas, o que lhe permitiu tornar-se, na época, um dos maiores produtores de Vinho Verde. Hoje a Casa da Calçada pertence ao Grupo Mota-Engil, que continua a produção de vinho. É com o embalo destas histórias que no final do jantar decidimos subir ao quarto andar, que dá acesso ao jardim, onde existe um salão de festas, e às vinhas, que se estendem em patamares por ali acima. 

Mas à noite não se consegue ver nada, nem sequer as silhuetas das vinhas. Por isso, regressamos no dia seguinte, já depois de um pequeno-almoço a olhar o Tâmega e a Igreja de São Gonçalo. É de manhã cedo e um sol tímido tenta romper um ar ainda frio. Está uma luz que dá uma nitidez a tudo o que nos rodeia, as laranjeiras, o granito a erguer-se, sólido, a vinha a renovar-se, um homem a trabalhar num tractor, uma teia de aranha que une duas pedras e que guardou apenas as gotículas do orvalho da noite. E, lá em baixo, Amarante a despertar

Nome
Restaurante Largo do Paço
Local
Amarante, Madalena, Largo do Paço, 6
Telefone
255410830
Horarios
Todos os dias das 12:30 às 15:00 e das 19:30 às 22:30
Website
http://www.casadacalcada.com
Preço
50€
Cozinha
Trad. Portuguesa
Espaço para fumadores
Não
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