Quem chega sabe exactamente ao que vem e o aspecto, modesto e quase escondido, está longe de anunciar ou sequer denunciar uma cozinha rica e opulenta, de cariz autêntico e raiz popular. A prova de que quem vê caras não vê corações, mais uma vez comprovada pelo facto de que há muito que este restaurante não é aquela espécie de tesouro escondido e só frequentado por íntimos e conhecedores.
Bem pelo contrário! Já foi até palco muito visitado por gente famosa, sobretudo ligada ao futebol, mas também de outras áreas, como atestam as fotografias e recordações que hoje decoram uma das paredes. Uma espécie de galeria do tempo, onde glórias do pontapé na bola se cruzam com gente da vida pública, alguns artistas e até Fidel Castro. Sim, o velho símbolo de Cuba, que quando esteve no Porto fez questão de não voltar à ilha sem afinar o gosto nesta popular casa de comidas.
É certo que o morro, a monumentalidade do convento e as fabulosas vistas sobre o Porto e a foz do Douro mais que justificam a passagem pelas ruas da Serra do Pilar, mas este não é definitivamente um restaurante com ambiente turístico, sendo claramente outra a motivação para os seus frequentadores: as comidas de tacho, os preparados do forno, peixes frescos e carnes suculentas e perfumadas. Sempre servidas em doses generosas e avidamente (alarvemente mesmo, em muitos casos) saboreadas pela clientela.
Que ninguém vá à procura de ementa ou menu, que a oferta diária consta apenas de uma série de “especialidades do dia” numa lista manuscrita por José Inácio, o dinâmico e perspicaz “Zé da Serra”. É ele quem comanda a sala, em muitos casos ditando até aquilo que cada cliente deverá ter sobre a mesa. Abandonar-se aos seus critérios será sempre boa opção, mas com consequências em termos de fartura e densidade. E também na conta final, como por brincadeira gostam de lhe assinalar os clientes. Daí o epíteto de “Zé Ladrão”, pelo qual é também hoje conhecido o estabelecimento.
A mais recente experiência fez-se por estes dias em grupo de quatro. A predisposição era para apenas uma entrada leve e um pescado, para não interferir com a jornada de trabalho. Umas petingas fritas, camarões e cherne grelhados, mas que acabaram com uns acrescentos de vitela com massa e galo assado no forno. É assim este ladrão!
Imaculadas as sardinhinhas fritas, fresquíssimas e sem resquícios da fritura. Literalmente de palmo os camarões dos mares de Madagáscar e com um molho de alho a superar a tendência de secura que lhe é característica, enquanto a avantajada posta de cherne (equivalente a meio bacalhau de média dimensão) se decompunha em suculentas lascas. Coberta por salsa e cebola grosseiramente picadas e acompanhada com batata cozida, feijão verde e couve lombarda com a mais pura expressão dos sabores e aromas da natureza. Tudo simples e a dar apenas o melhor de cada produto.
A mesma saborosa simplicidade na massinha de vitela, com a carne maronesa a deixar-se desfiar e a calda do guisado envolvendo o esparguete. Imponente o aspecto da avantajada coxa e sobrecoxa do galo (mais parecia de cabrito), com batata assada e a trazer ainda à mesa o calor e aromas do forno. É claro que se prescindiu de qualquer das sobremesas gulosas, como as rabanadas ou o creme queimado que são famosas na casa, em favor de refrescantes fatias de melão.
Para lá do cherne (55€/kg), a lista de “especialidades do dia” incluía também outros peixes como garoupa (49€/kg), igualmente na brasa, faneca da linha com salada (15€), pescada em posta dourada (24€), cabeça de pescada escalada (22€) e sardinha pequena com arroz de feijão (15€). Nas carnes, as propostas do dia passavam também por fígado de boi com cebolada (14€), fêveras de porco com alho e piripiri (18€), moelas com molho especial (16€), bife do vazio (30€) e cabrito assado no forno (40€), caso em que a dose traz metade do animal oriundo dos altos de Armamar.
Tendo os filetes de pescada já como uma espécie de emblema da cozinha da casa, o Zé da Serra tem também outra série de pratos de grande consistência que vão variando ao longo da semana. À segunda, filetes de polvo com arroz de feijão ou grelos; tacos de bacalhau, à terça; costelas de porco no forno, à quarta; cabidela de frango, à quinta; rojões à moda do Minho ou medalhões do lombo de boi, à sexta; feijoada e cabrito assado no forno, ao sábado, pratos que se repetem ao almoço de domingo a par de um fogoso cozido à portuguesa.
Um receituário tradicional que por aqui se cumpre com um grande critério e rigor, tanto na origem como na qualidade dos produtos. Ao dinamismo e sagacidade do Zé da Serra junta-se a arte culinária da mulher, Maria Helena, que domina os fogões e é a alma e espírito da casa.
Ao serviço simples, despachado e cordial junta-se uma oferta de vinhos à altura da exigência gastronómica. Mais uma vez, a lista é confusa e limita-se a algumas propostas com bom compromisso entre preço e qualidade, mas basta olhar em volta para ver que há por ali também quase todas as grandes referências do Douro ou Alentejo.
Apesar do estilo popular, simplista e até algo confuso, é evidente que a qualidade da cozinha atrai uma clientela abastada, onde pontuam empresários, quadros e profissionais liberais. Em dias de lazer são as famílias que enchem o restaurante, pelo que será sempre aconselhável a marcação prévia.
Com fama e proveito, o difícil é mesmo não gostar deste ladrão. Há que ter em atenção que as doses são mais que generosas e podem ser suficientes para toda a mesa, mas é claro que a qualidade tem custo e esquecido o critério na hora de olhar para os rótulos dos vinhos a factura pode facilmente disparar. Mas, como se costuma dizer, nisto de restaurantes só há duas espécies: os caros e aqueles que são mesmo bons.
- Nome
- Zé da Serra
- Local
- Vila Nova de Gaia, Canidelo, Rua Luís de Camões, 580
- Telefone
- 223796785
- Horarios
- Todos os dias das 12:30 às 15:00 e das 19:30 às 22:30
- Preço
- 30€
- Cozinha
- Trad. Portuguesa