É verdade. Foi mesmo assim. Ligaram da recepção do jornal a dizer que tinha chegado uma costeleta de cavalo, devidamente embalada em vácuo. A acompanhá-la vinham algumas indicações simples sobre a melhor forma de cozinhar carne de cavalo e um convite para um almoço misterioso num novo restaurante de Alfama com o sugestivo nome de Boi-Cavalo.
Foi, há que reconhecer, uma forma eficaz de chamar a atenção. Uns dias depois estávamos a almoçar no Boi-Cavalo — que abriu as portas no dia 25 de Abril, ocupando o espaço onde anteriormente funcionou o restaurante As Pretas, na Rua do Vigário — para perceber se este era, como tínhamos imaginado, um local especializado em carne de cavalo.
Não era.
Não nos serviram carne de cavalo, mas apresentaram-nos coelho com salada de caracóis, e explicaram-nos o espírito por detrás desta quimera. “Há sempre uma dualidade aqui”, diz Pedro Mariguesa, que é, juntamente com os dois chefs, Hugo Brito e Pedro Duarte, e ainda Ricardo Regal, um dos sócios do Boi-Cavalo. “Há dois chefs, com personalidades diferentes, há uma mistura de um lado antigo, que tem a ver com este espaço, que já foi um talho, e uma certa herança punk, que se nota nas tatuagens do Hugo.”
O espaço é relativamente pequeno, apenas 28 lugares, mas rapidamente ganha o espírito de uma casa de amigos. Uma das razões para isso acontecer é o facto de entre a cozinha e a sala haver uma zona com uma estante de livros de cozinha, um quadro negro com receitas rabiscadas a giz e uma grande mesa que serve para o empratamento, e à volta da qual, inevitavelmente, todos se reúnem, de copo de vinho na mão.
Hugo abre um dos livros retirado da estante, a Cozinha de Lisboa e Seu Termo, de Alfredo Saramago, para mostrar o que os inspirou: “O conceito começa com a comida de Lisboa. Há uma recolha enorme de gastronomia tradicional portuguesa e Lisboa tem um papel central, entre a cozinha que no século XIX se fazia nos melhores hotéis da cidade, e as receitas populares, muitas delas da zona saloia. Durante muito tempo parece que essa cozinha ficou esquecida, por isso sente-se uma certa perplexidade ao ler o livro de Alfredo Saramago.”
A ideia, frisa, não é fazer do Boi-Cavalo mais uma “tasca moderna”. “O que queremos é ir à procura desse património da cozinha de Lisboa e relacionarmo-nos com ele”. Procura no livro uma foto que, diz, simboliza este espírito: um coração de boi cravejado com cravinhos. “E pensar que houve um tempo na história de Lisboa em que era possível apresentar um prato como este. Não quero parecer pomposo, mas é de uma honradez, de uma sinceridade. O que nós gostaríamos de fazer era isto, mas não temos coragem”, diz, rindo. “Ainda”, interrompe Pedro Duarte, rindo também.
E, no entanto, na lista do Boi-Cavalo há já algumas ideias ousadas. Aquele que se tornou já, em apenas um mês de vida, um dos pratos mais emblemáticos da casa é o carpaccio de coração de boi com muxama e pickles de nabo. Mas para quem não se atrever a tanto há várias alternativas na carta, que não é muito longa mas muda com frequência em função da disponibilidade de ingredientes.
Há também canja de amêijoas com foie-gras e cebola grelhada; fígado de tamboril salteado com feijoada e salada de alho francês; ervilhas com ovo biológico estrelado e kimchi (couve fermentada típica da cozinha coreana); polvo de rocha, cabidela e ar de pepino; bife à cortador com chamuça de batata-doce. E os pratos que provámos no almoço: carapau fumado com molho à espanhola, gel de Alvarinho, funcho, coentros e cebola roxa; escabeche quente de pregado com puré de topinambo (um tubérculo de cor clara e sabor doce) e tomatada; e, para terminar, torta de laranja com geleia de laranja de Setúbal e crumble de queijo de cabra.
Houve também tempo para provar um prato novo, que ia entrar para o menu, e que junta dois ingredientes inesperados: coelho cozido a baixa temperatura, feito num rolo e frito, apresentado sobre uma base de pimentos em puré, chalotas salteadas e… uma salada de caracóis. Pode parecer estranho, mas os sabores do coelho e dos caracóis funcionam bem em conjunto.
A ideia dos dois chefs — que se conheceram no restaurante 100 Maneiras, de Ljubomir Stanisic — é precisamente poderem arriscar e construir pratos que possam ser tão inusitados como um boi-cavalo, mas que, no final, resultem bem. Era já isso que Hugo fazia no espaço onde esteve anteriormente — a cafetaria provisória da Trienal de Arquitectura, que funcionou durante três meses no Palácio Sinel de Cordes, junto do Campo de Santa Clara.
“O Hugo fez 134 receitas em três meses”, diz Pedro Mariguesa. E este arquitecto, sócio do projecto e responsável pela adaptação do espaço deste antigo talho (ainda se vêem os ganchos de ferro na parede), sabe do que fala. Durante a Trienal fez da cafetaria a sua cantina. Ia lá todos os dias e todos os dias experimentava coisas diferentes. “O Hugo tem uma enorme criatividade e o Pedro acompanha-o muito bem”, diz.
Entusiasmado com o que viu na cafetaria da Trienal, Pedro Mariguesa não hesitou quando se pôs a hipótese de, em conjunto, abrirem um restaurante. Juntaram-se a Ricardo Regal, souberam que o espaço da Rua do Vigário ia ficar livre e avançaram. No final de Abril abriram as portas e a curiosidade por um boi-cavalo pintado no exterior fez com que os primeiros clientes começassem a entrar neste que é, decididamente, um espaço diferente em Alfama. A porta está sempre aberta (por enquanto apenas para jantares) e a ementa reserva surpresas. Quem sabe se um dia não aparece num prato um coração cravejado?
- Nome
- Restaurante Boi-Cavalo
- Local
- Lisboa, Castelo, Rua do Vigário, 70B
- Telefone
- 218871653
- Horarios
- Domingo, Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado das 20:00 às 02:00
- Website
- https://www.facebook.com/boicavalo.restaurant
- Preço
- 25€
- Cozinha
- Autor