A tendência da época é que o país rume massivamente a Sul, particularmente ao Algarve com o intuito de se descontrair, banhar-se — e por vezes na esperança de conjugar estes dois propósitos com os prazeres da mesa. Como medida profiláctica de possíveis dissabores estivais à mesa, siga-se na direcção algarvia mas sem a convicção de lá chegar, pois a saída para Beja leva-nos a um destino improvável e diferente no Baixo Alentejo.
Já com a cidade a dissipar-se há largos quilómetros nas nossas costas, ao deixarmos Beja em direcção a Castro Verde pelo IP2, a indicação “turismo rural” surge-nos à esquerda, ao quilómetro 371. Faz-se uma espécie de “u” numa estrada de terra batida, passando por baixo do itinerário principal para seguir em caminho paralelo e contrário à via central até se chegar às portas da Herdade da Malhadinha Nova. Estas indicações são cruciais para se alcançar o destino, caso não se possa colocar directamente as coordenadas num GPS. Intramuros percorre-se uma alameda entre vinhas e oliveiras que nos leva à casa principal da herdad,e num terreiro amplo onde se alinham também as cavalariças, a adega, a loja e o restaurante — motivo da nossa visita.
O ambicioso projecto da Malhadinha Nova iniciou-se em 1998 quando a família Soares, proprietária de uma renomada rede de garrafeiras no Algarve, comprou dezenas de hectares de terreno em Albernoa. Ao longo dos anos, o portefólio da herdade tem-se alargado além das vinhas (o core business da empresa), com alguns hectares de olival, uma horta generosa, um hotel requintado e zonas de montado para criação de novilhos e porcos de raças alentejanas, ambos certificados com Denominação de Origem Protegida (DOP). Um sólido conjunto de matérias-primas autóctones que faz subir as expectativas acerca do menu proposto no restaurante, actualmente com a consultoria do alemão Joachim Koerper, chef do restaurante Eleven em Lisboa. A oficiar no local está Bruno Antunes como responsável pela execução da carta fixa, enquanto a cozinheira Vitalina Santos se encarrega dos menus de cozinha regional e dos pratos de caça, que apenas estão disponíveis por encomenda.
A ementa é curta e baseada em produtos de época. Nas entradas há “salada de sapateira com guacamole, coentros e ovos de wasabi”, o “camarão com espargos e vinagreta de laranja da herdade”, ou o “queijo fresco de Albernoa, presunto de Porco Preto D.O.P. e compota de alperce da herdade”. Do mar surgem apenas dois itens: o “peixe do dia [variável] com legumes da nossa herdade” e o “bacalhau confitado com duo de azeitona da herdade e espuma de açafrão”. Nas carnes destacam-se alguns ingredientes “de casa”, como o “naco de novilho D.O.P. com molho de Marias da Malhadinha, pimenta e risotto de aipo”, a “bochecha de porco preto com queijo Serpa, cebola confitada e xerém algarvio”, o “risotto de beterraba, frango do campo, crosta de parmesão e crocante de beterraba” e o “magret de pato com arroz de lavanda, favas ao gengibre, pipoca de arroz e molho balsâmico”.
A sala toda em vidro propicia o espectáculo de ver pavões, perus ou um corpulento galo de canto afinado a circularem junto à transparência das paredes, como se estivessem a compor a imagem pictórica de uma natureza, neste caso, vivíssima. Foi, portanto, quase sem nos apercebermos que chegou à mesa o couvert (omisso na carta e que não foi cobrado na conta final (!?)), composto por manteiga, flor de sal e uma tacinha vazia para receber o suave e luzidio azeite produzido na herdade apenas com azeitonas galegas. Pães de trigo e centeio normais e um alentejano de boa qualidade. Veio depois a chamada “saudação do chef”, que neste caso foi um tártaro de atum com o picadinho do peixe muito saboroso temperado com molho de soja e cebolinho a criar boas perspectivas para a primeira entrada escolhida.
Começou-se então com o “atum ‘tunado’ com seu molho e tomate cherry da nossa herdade” (12 euros) a exibir quatro vistosas fatias de um naco tunídeo de grande qualidade, que depois de ser somente “tatuado” com as marcas da grelha a toda a volta da peça, foi “rolado” sobre sementes de sésamo branco e preto para ganhar um elemento crocante. Ao lado, o molho de tom pérola era “tunado” com um pouco de lascas do peixe, maionese e pareceu-me que com um toque de wasabi. À margem deste perfil asiático do atum, uns cubinhos de tomate e umas alcaparras carnudas davam um contraste doce salgado. Seguiu-se “uma interpretação do tradicional ‘caldo cerde’ de couve portuguesa, foie gras e lagostim da costa algarvia” (14 euros), que ao ser explicitamente anunciada (e bem), não surpreendeu pela arrojada versão que foi servida. Num prato fundo vinha uma juliana de couve branca, tipo coração, e outras verduras, com uma barrinha de escalope de foie gras (previamente salteado) a servir de pedestal ao miolo de um lagostim. Na mesa, foi servido um cremoso caldo de batata (a base da receita tradicional). O caldinho cobriu o fundo côncavo do prato, aquecendo as tiras de couve e restantes elementos, mas o vazio ao redor desta “ilha” de ingredientes meio perdidos não foi preenchido. Tanto o foie como o lagostim eram de grande qualidade, mas tinham pouco a dizer entre si e menos ainda ao emocional caldo verde, ficando o resultado a ser uma ligação inusitada de memória gustativa perene.
Dos principais veio o “borrego com polvo, tomate confitado, limão e couscous” (20 euros), onde, à semelhança do que aconteceu na entrada de “caldo verde”, o polvo e o borrego também tiveram um encontro forçado no mesmo prato. Felizmente aqui não foi obrigatório “casá-los”, resolvendo-se a coisa com furtivo “olá!” atirado à distância, pois os pequenos troços de polvo cozido (muito bom) pousados sobre as lascas de tomate que volteavam o prato podiam ser apreciados a solo e só depois se atacar o excelente e refrescante couscous de limão encimado com legumes salteados (cenoura, curgete, nabo, brócolos). O prazer cárneo veio através da óptima dupla de costeletas de borrego, ligeiramente rosadas e muito saborosas. O pico da refeição foi o “risotto de cevada com secreto de porco Preto D.O.P., legumes da herdade e alperce confitado” (20 euros), que eram grãos de “cevadinha” cozidos num caldo de legumes e servidos cremosos. Aqui a designação de risotto serve mais de bengala para “vender” uma guarnição pouco conhecida do que para valorizar o resultado. Sobre a cevada disposta ao comprido vinha um excelente “secreto” de porco alentejano, enrolado tipo charuto, a manter a humidade interior e sem excessos de gordura, com um primoroso molho demi-glace. Pontas de espargos e um apontamento fresco de uvas brancas completavam o prato onde o anunciado alperce esteve omisso.
Igualmente muito bem a parte das sobremesas com o “struddel de arroz doce com maçã e gelado de canela” (8 euros) a surtir numa estaladiça trouxa de massa filo servida morna e recheada com o arroz cremoso de sabor a baunilha, misturado com pedaços de doce de maçã. Muito agradável, mas talvez um pouco pesado para a época, mesmo trazendo um bom gelado de canela. A puxar pelos sabores de Verão estava a saborosa “trilogia de citrinos da nossa horta” (10 euros), com um macaron recheado de doce de laranja, uma mousse de tangerina e uma espécie de tarte de limão “merengada” servida num copinho de vidro.
Excelentes produtos da herdade e não só, e uma confecção cuidada e bem apresentada, são atributos óbvios que saltam à vista, as ligações entre alguns ingredientes é que por vezes são forçadas, parecendo uma tentativa de mostrar muito produto e algum (suposto) requinte em poucos pratos. O serviço simpático e informal q.b., atento e informado. Nos vinhos há apenas e só o catálogo da casa (opção natural e sem reparos), e está quase todo disponível, o que já não é dizer pouco. Podem fazer-se aqui provas verticais de seis consecutivos, ou beber em grupo garrafas magnum (1,5lt), jeroboam (3lt), etc. (6lt, 9lt ou 12lt).
A Malhadinha Nova tem vindo a impor-se no desmesurado e competitivo mercado dos vinhos, lançando referências de qualidade que são destacadas pela crítica e muito apreciadas pelo consumidor. O marketing emocional de envolver o lado afectivo e familiar nos rótulos da casa foi uma inteligente estratégia de afirmação inicial, mas que é hoje confirmada pelo profissionalismo e qualidade de tudo o que aqui é feito, facto que merece reconhecimento.
Uma refeição de muito bom nível que teve como gran finale o silêncio enriquecedor que se recebe ao auscultar as planícies alentejanas, mostrando que esta região — agora a ser descoberta lá fora — é desde há muito a “nossa” potencial Toscana. Ideia vaticinada há vários anos por um amigo alentejano que reconfirmo em absoluto.
- Nome
- Herdade da Malhadinha Nova
- Local
- Beja, Albernoa, IP2, Km 371
- Telefone
- 284952210
- Horarios
- Segunda-feira, Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado das 12:30 às 15:00 e das 19:30 às 22:00
- Website
- http://www.malhadinhanova.pt/
- Preço
- 50€
- Cozinha
- Autor
- Música
- Hard Rock