Não é pelos tectos abobadados e o ar severo da sala que o Restaurante Afonso é uma espécie de templo no Norte alentejano, mas antes pela gastronomia que ali se pratica, merecedora de verdadeira devoção. É assim há quase 60 anos - que se completam em 2014 -, tempo durante o qual esta casa se tornou uma referência incontornável para os amantes da boa cozinha alentejana, designadamente dos pratos de caça que por aqui são mesmo servidos durante todo o ano. Outra das referências é a opulenta carta de vinhos, com criteriosa e abundante oferta e cobrindo praticamente toda a produção de qualidade da região. Um caso raro de critério e abrangência.
Ao que nos contam, tudo começou com o namoro entre Afonso, um jovem vindo da região Centro para trabalhar como caixeiro, e uma moça da terra com especial jeito para a confecção de petiscos. Com o casamento veio a abertura de um negócio de café, que rapidamente ganhou fama pelos saborosos petiscos de dona Bia, obrigando ao alargamento de instalações e à criação de espaço próprio para restaurante. Ainda assim é nos dias de hoje, com o café e restaurante a funcionarem em espaços contíguos do mesmo prédio no centro da vila e funcionando também uma hospedaria nos pisos superiores. Acolhimento completo, portanto.
O segredo para o sucesso de tantos anos esteve sempre na associação entre o olho de Afonso para o negócio e a arte da mulher para as coisas dos fogões. Ainda hoje, asseguram-nos, é dona Bia que superintende nas questões da cozinha, mantendo as receitas e escolhendo produtos que fazem deste restaurante um caso ímpar de sucesso e qualidade associada à preservação dos melhores usos e costumes da gastronomia do Alentejo.
Importante também é que parece estar assegurada a continuidade geracional, uma vez que há familiares empenhados no negócio, tanto na gestão como na cozinha. E isto, nos tempos que correm, é uma muito boa notícia.
E se há um extremo cuidado na preservação de usos e costumes culinários, idêntico é o empenho na actualização do espaço. Ambiente de estilo clássico mas cuidado e elegante. Ainda há poucos anos foram feitas obras de manutenção que conferiram à sala um acolhedor ambiente de estilo tradicional, com tectos abobadados em tijolo e luz indirecta. Cuidada é também a apresentação das mesas. Alvas toalhas e guardanapos em algodão, adequado serviço de copos e cadeiras confortáveis.
Passando ao que verdadeiramente interessa, há que dizer que a lista é igualmente vasta e opulenta, com mais de três dezenas de pratos, entre os quais se destacam, pelas suas especificidades, os sete de caça e outros cinco dedicados apenas ao porco preto alentejano.
Há também, entre as propostas de carne, uns pezinhos de coentrada que são normalmente servidos como entrada, o que bem diz sobre a procura e o grau de satisfação da clientela acerca deste típico petisco alentejano. Entre migas, ensopados e outras "especialidades", há um que atingiu já o estatuto de emblema da casa. É a perdiz à dona Bia e que só por si bem justifica a viagem a Mora. Mas já lá vamos.
Nesta última incursão até à simpática e acolhedora vila alentejana, que se tem destacado também pelo moderno Fluviário e pelos prémios de fotografia da Estação Imagem, a romagem ao templo de dona Bia cumpriu-se em duas etapas, ou seja, almoço e jantar.
Nas entradas provaram-se ovas de peixe, carapaus de escabeche, salada de polvo com grão, presunto, orelha de coentrada e coelho com molho vilão. Pequenas porções (5/6€ cada), com destaque para os saborosos pedacinhos de orelha, a carne de coelho desfiada e o apuro do escabeche com as sardinhas atomatadas. Mesmo denunciando a longa conservação em frio, fresca e refrescante a saladinha com ovas. A destoar, só mesmo a banalidade do presunto pata negra, ainda por cima com um preço (10€) que praticamente dobrava o de todas as outras porções.
Nos peixes, ficámo-nos pelo bacalhau à Brás (14€), uma das muitas "especialidades" da casa, que se apresentou macio, cremoso e aveludado. Além de outro bacalhau, à Afonso (26€, para duas pessoas), a oferta piscícola estendia-se ao salmão, robalo, dourada e bife de espadarte grelhados (15€ cada).
Na secção de "pratos de porco alentejano" provaram-se os lombinhos (16€), grelhados em dose generosa, saborosa e muito bem temperada. As propostas passam também pelos medalhões, presas, secretos e cachaço. Bem mais extensa é a lista de carnes (treze, ao todo), com propostas que vão desde o cabrito à morense (19,50€), passando pelo ensopado de borrego (14€), migas de espargos bravos (14€) e os tais pezinhos de coentrada (10€), só para referir as receitas mais ligadas à cozinha alentejana.
Perdiz no centro da devoção
É nos pratos de caça que está o centro da devoção que é devida ao Afonso, que é como quem diz a dona Bia. Coelho bravo com molho vilão (13,50€), arroz ou ensopado de lebre (18€), arroz de pombo bravo (18€) e perdiz ou pombo à dona Bia (23,50 e 18€, respectivamente). Há também, na secção de carnes, um frango com a mesma preparação, que poderá funcionar como uma espécie de prova de consolação, mas que, obviamente, não entra neste campeonato.
As provas recaíram sobre a cabidela de lebre e a perdiz, como não podia deixar de ser. A primeira digna dos maiores encómios e absoluta aprovação, não só pela especiosidade das carnes mas também pelo arroz no ponto exacto de cozedura e vinagrinho, e simplesmente soberba a perdiz. O prato é há muito conhecido e costuma até causar um certo frisson quando é anunciado no jantar anual de caça que tem sido organizado no concelho, a receita parece ser o segredo mais bem guardado na família. Percebe-se que leva muita cebola, gorduras ervas aromáticas, mas o máximo que revelam é que "leva ao todo 14 ingredientes". O sabor é deveras único e cativante, com aromas que se poderiam comparar ao das melhores mostardas, ingrediente que, asseguram, não entra na receita. A arte e o saber acumulados por dona Bia ao longo do tempo.
Uma última palavra para os vinhos, que propositadamente escolhemos entre aqueles que são igualmente produzidos na zona de Mora. Primeiro a fruta e vivacidade do Arundel (20€), que é produzido em Pavia a partir da casta Arundel Petit e, depois, um fabuloso Cruz Miranda de 2001 (60€), que esteve na perfeição para o desafio da perdiz. Aromas especiados de evolução com uma frescura ainda impressionante para um vinho com mais de uma década de garrafa. Talvez um dos melhores vinhos de sempre do Alentejo, pena que já não se encontre e tenha deixado de ser produzido.
Também pelos vinhos, o Afonso é um daqueles restaurantes sólidos e consistentes, com personalidade e identidade muito próprias, como já é raro encontrar-se. Um espaço, tal como resume o enólogo Diogo Lopes na apresentação da carta de vinhos, "onde há mais de 50 anos se dá a conhecer o melhor da gastronomia alentejana, através das mãos, sabedoria e dedicação de uma família". É mesmo assim e com um serviço que é sempre também cuidado e atento.
- Nome
- Restaurante Afonso
- Local
- Mora, Mora, Rua de Pavia, 1
- Telefone
- 266403166
- Horarios
- Todos os dias das 12:00 às 15:00 e das 19:00 às 23:00
- Website
- http://www.restauranteafonso.pt
- Preço
- 25€
- Cozinha
- Alentejana
- Espaço para fumadores
- Não