Fugas - restaurantes e bares

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Nossa Senhora das Conservas

Por Luís J. Santos ,

Quem passa pelo Cais do Sodré sente o isco: é o ar, mobiliário e estrutura de loja à antiga em que cintila algo de novo, são ícones das pescas que se conjugam com uma freguesia em animadas e belas conservas, é a iluminação quente que nos atrai até sermos mesmo pescados.

"Não estava à espera que as pessoas aderissem tanto a isto de comer conservas". Não estava Bárbara Matos, que gere a loja e bar de conservas Sol e Pesca, no coração do Cais do Sodré, e não estava ninguém. Convenhamos que andar a comer conservas soa a coisa de tempos poupadinhos, não era moda, não era gourmet, não era nada que ficasse bem a gente moderna e prendada. Atenção ao tempo verbal: não era. Senhoras e senhores, eis a nova estrela do tarde-noite de Lisboa: Sua Excelência, a Conserva.

Foi subitamente no Verão passado que a velha loja do Marreco, fechada há 20 anos mas que, diz-se, era das melhores em artigos de pesca, começou a mostrar nova cara e a resplandecer. Num dia quente de Julho, com o Tejo a dois passos, a Sol e Pesca reabria, as suas prateleiras enchiam-se de conservas, as canas, iscos, redes e fios, carretos, bóias e anzóis rejuvenesciam, o néon reavivava. A velha loja de pesca do Marreco até parecia a mesma mas, na verdade, o que se manteve, foi, resume Bárbara, "o respeito" e "a memória do espaço". Além, já se vê, do restauro de tudo o que podia ser aproveitado, mobiliário e armários incluídos. Agora, a pesca é só decoração e a casa, em vez de dedicar-se à pesca, serve à mesa o fim do ciclo: dá a provar os prazeres das conservas portuguesas, produto de excepção de uma indústria inerente a Portugal em vias de extinção. Mas, com a Sol e Pesca, a conserva não é produto secundário de supermercado nem coisa de exportação ou (que a há) excepção gourmet. É para todos e é servida à mesa com o luxo da simplicidade (e, atenção, preço justo).

A loja, renovada e criativamente respeitada, só pode encher de orgulho qualquer português a quem o mar ainda correr no sangue. Projecto de Henrique Vaz Pato (co-proprietário de outro espaço cumpridor das memórias do seu passado, o restaurante Cantina Lx, na Lx Factory), é gerido, como se um filho pródigo, por Bárbara, rapariga do Norte e a quem as memórias do Sodré pouco dirão. Mas Bárbara dedicou-se cedo à restauração e aos 27 já era dona de um restaurante na Invicta. Quando decidiu rumar a Sul, aproveitou a experiência para dedicar-se a este renovador projecto e é ela que está atenta a cada detalhe.


Conserva-me

Na atmosfera de museu vivo da Sol e Pesca, as peças de arte, acima de tudo, são as que estão expostas no mostrador bem iluminado: pelas prateleiras, conservas escolhidas a dedo ("Fizemos um grande trabalho de pesquisa e provas pelo país", explica Bárbara) e com embalagens com designs geniais, entre o encantador e o nostálgico. A salinha adivinha-se e vê-se toda da rua, que a montra nada esconde. À porta, uma mini-esplanada convida a apreciar a navegação (irrevogável) para o futuro do Cais do Sodré. Lá dentro, é um mundo marítimo, com raias em balcão de tampo de mármore, grandes armários de madeira, mesas e cadeiras tradicionais. Por todo o lado, todo o tipo de acessórios de pesca gloriosamente expostos, cartazes e até estatuetas piscatórias, heranças do Marreco, máquinas, ventoinhas e rádios antigos, um candeeiro-polvo, um peixe-balão a esvoaçar.

Os olhos vogam por marcas salgadas mas a foz, ah!, a foz!, são as prateleiras de conservas: sardinhas, cavalas ou bacalhau, atum, enguias ou polvo, anchova ou biqueirão, petinga ou carapau... E as marcas ecoam na nossa memória marítima: de Matosinhos, a Pinhais, a Minerva ou a Cocagne / Ramirez; da Conserveira de Lisboa, a Tricana e a Minor; dos Açores, a Santa Catarina; da Murtosa, a Comur... Tudo para levar para casa ou para degustação in loco, servidas à mesa com pão-pão (alentejano). Especial é também o vinho da casa, também de um pequeno produtor, a Quinta da Califórnia, de Azeitão.

Bárbara explica que não há pretensões de gourmet ou de engalanar o que dispensa engalanamentos. O ambiente e serviço são informais e cada conserva vale por si, porém com acompanhamentos que a própria mestre vai descobrindo e experimentando. É assim que a cada conserva, seu aprazível acrescento, entre cebolinho e funcho, tomate e pimentão, pimenta preta e vinagrete, picantes e alcaparras, etc., etc. Os óleos de lata são sempre escorridos e é o rei azeite que acama as postinhas. Como todos os produtos da casa são orgulhosamente portugueses, a cultura lusa prossegue nos moscatéis, vinhos e licores. 

A manutenção da memória piscatória é de tal ordem que os cartões-de-visita ainda são do tempo do Marreco e neles ainda se lê "loja de artigos para pesca desportiva e profissional". Não em vão, ainda no outro dia um velho pescador veio ver se já estava pronta a cana de pesca que deixou para o Marreco arranjar, aí há mais de 20 anos... É que há coisas que sabe bem conservar.


Estrelas do mar


Murtosa
Da quase septuagenária Fábrica de Conservas da Murtosa, exímia nas enguias (é a única que as conserva), a marca Comur. Em destaque: muita sardinha e cavala, bacalhau ou mesmo mexilhão. Nas enguias, o detalhe: há uma embalagem delas com 1250gr (€32,30).

Santa Catarina
De S. Jorge, obras-primas da Conserveira de Santa Catarina, que já esteve para fechar mas que a união de apoios e trabalhadores salvou. As conservas são um primor e o peixe é apanhado na tradicional pesca de salto e vara (cana e isco). Aqui, o coração é de atum (pronto: é o melhor do mundo) - sangacho, petiscada, posta, filete... Fixe a palavra mágica: ventresca - filete da barriga do atum, jóia da coroa, luxo deleitoso.

Pinhais
Da tradição de Matosinhos, de conserveiras em extinção, eis a Fábrica de Conservas Pinhais, 84 anos de método artesanal e peixe fresco. O que dá os seus frutos: "abrem-se as latas e as postas são lindas, os pedaços de tomate inteirinhos", sublinha Bárbara. Há sardinhas ou filetes de cavala em azeite.

Nome
Sol e Pesca
Local
Lisboa, Lisboa, R. Nova do Carvalho, 44
Telefone
218076642
Horarios
Terça a Quinta das 18:00 às 02:00
Sexta e Sábado das 18:00 às 03:00
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