Fugas - restaurantes e bares

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Mesa moderna e fidalga, sem renegar a tradição

Por Fortunato da Câmara ,

No remanso de uma planície algarvia, um restaurante de hotel que não vira costas à envolvência, conjugando o melhor dos produtos regionais. No Morgadinho há um menu fidalgo de herança local feito com competência que merece ovação.

Curvilíneo, exíguo e paciente - eis o trajecto que fazemos até ao nosso alvo alvo gastronómico. Aqui e ali a estrada força-nos a parar e ceder a prioridade, para depois seguirmos com moderação o caminho estreito para uma espécie de paraíso. Numa das curvas saltamos para fora daquela gincana sinuosa para chegar tranquilamente ao Suites Alba Resort & Spa. O acesso parece mais complexo do que na realidade é, pois são apenas uns parcos quilómetros. Suficientes para nos manterem longe de tudo, mas nem por isso desencorajadores, antes pelo contrário. Sabe muito bem partir à descoberta de algo quando o que mais há em redor são locais óbvios e densos a agredir a paisagem. 

O Algarve que já foi reino sucumbiu sem rei nem roque ao crescimento selvagem. Várias construções avançaram com a mesma precisão cruel de um jogo de xadrez, fazendo o irreversível (este sim!) xeque-mate ao território que está hoje infelizmente à vista graças ao tabuleiro de interesses que desfigurou a região. Fora do desordenamento paisagístico parece estar este hotel, recatadamente sobranceiro à praia da Albandeira, algures entre o Carvoeiro e Porches.

Pequenas villas de traça discreta e elementos arquitectónicos inspirados na região, construídas de forma espaçada, mas sem açambarcarem a planície onde estão inseridas. Quase ao fundo do empreendimento fica o restaurante Morgadinho, com esplanada, piscina e acesso directo à praia. Está no fim do resort, mas a realidade é que este é um lugar de princípios. Primeiro são os dias, que principiam aqui ao pequeno-almoço, e depois é um espaço onde o princípio de se olhar para o que existe em redor é visível na carta.

Há muitos produtos locais presentes nas diversas propostas conjugados com outros, estrangeiros à região. Bons exemplos são entradas como o atum (de Vila Real de Santo António) corado e em “muxama”, com sapateira, amêndoa e puré de laranja, ou então o ovo com puré de “griséus” (ervilhas), enchidos da serra de Monchique e pão frito. Também há matérias-primas clássicas, como foie gras ou o queijo chèvre, mas sem perderem de vista a companhia nacional de pêra Rocha, alfarroba ou marmelos. Pratos como a garoupa num aveludado com berbigão, broa e milho bebé, ou nas carnes o borrego de Monchique com legumes “braseados” e puré de cenoura à Algarvia são indicativos de que há um saber olhar “para dentro” antes de cozinhar virado “para fora”.

Carta de vinhos variada

O ambiente não podia ser mais descontraído e apelativo aos prazeres da mesa. Sala sóbria e confortável, toda em vidro, para que não se perca um centímetro do espectáculo exterior com o mar em surdina. O que se perde em paisagem aos jantares, ganha-se na mesa, com a carta mais elaborada onde se pode conhecer o trabalho de Louis Anjos, que foi distinguido como “cozinheiro do ano” em 2012. Aos almoços a onda é petisqueira, à mistura com algumas trivialidades, mas com marcação prévia a carta dos jantares também está disponível.

A primeira prova foi no “couvert” (3 euros/pax), composto por pão (banal, a destoar de tudo o resto) e uma travessa de vidro onde estavam azeite com “balsâmico”, flor de sal, manteiga de ervas e paté de atum. O destaque foi para o paté de atum, com os flocos do peixe a serem de boa conserva, temperados com cebolinho e a maionese em quantidade discreta, o que só beneficiou a saborosa mistura. Apesar da bondade da sugestão, a ideia de salpicar o pão com flor de sal não convenceu minimamente. Oferecido pelo chef, veio um agradável petisco de “boas-vindas” que era um tradicional lombo de carapau “alimado” (salgado, aferventado, limpo de peles e espinhas) pousado sobre uma espuma de batata e uns minicubinhos de tomate, pimentos de várias cores e salicórnia, tudo a vir “alojado” numa lata de conserva.

A primeira entrada, “cavala” (8,50 euros), resultou em cheio. Pequenas tranches do lombo do peixe “braseado” a maçarico, com a pele levemente tostada e a sentir-se uma marinada ácida no tempero. Vinham sobre triângulos de um xerém sólido (com a consistência próxima de uma polenta italiana) de sabor intenso ao caldo do peixe com que foram feitas as típicas papas de milho. A servir de base, o tom vivo alaranjado do puré de salada Algarvia (montanheira) e uns apontamentos de cebolinhas, rabanetes, e mini-espigas de milho em pickles, a darem uma acidez suave a este belíssimo conjunto. Seguindo a lógica de dar aos pratos o nome da matéria-prima em destaque, veio “o cordeiro” (9 euros), anunciado como sendo da serra de Monchique e descrito na carta “sob a forma de um carpaccio”, para evitar apropriações indevidas, embora fosse mais simples e correcto chamar-lhe apenas “laminado”, pois era assim que a carne se apresentava nas suas tiras finíssimas. A delicadeza do lombinho do cordeiro cru, de sabor discreto, quase neutro, a ser complementado por pontos de creme de ervilhas e de pesto de hortelã (a dar frescura). A carne salientava a sua presença na ligação às lascas de parmesão e embora o equilíbrio de sabores fosse interessante ficou a sensação de que o cordeiro poderia ter mais protagonismo. 

Uma abordagem moderna e visualmente atractiva veio com “a caldeirada” (25 euros), inspirada na tradicional algarvia, mas desmontada no prato. Nacos de tamboril, robalo, rascasso e um camarão, todos tratados a preceito na confecção, sem perderem sucos e a manterem a estrutura da “carne” de cada um. Vinham acompanhados por uma deliciosa e bem engendrada “batata caldeirada”, espécie de terrina de batata-doce de Aljezur regada com o molho típico da confecção, a ir depois ao forno até secar e intensificar o sabor a caldeirada, exibindo fragmentos de pimento pelo meio. Uma nota lúdica e igualmente saborosa nos “esféricos de amêijoa”, com a esferificação de um caldo à Bulhão Pato (esverdeado?!). Não se percebeu a inclusão disparatada de pimento verde, que nem era perceptível no sabor do caldo (e ainda bem), deixando a esfera verde impedindo de se ver o miolo do bivalve que havia no interior. À parte vinho um excelente molho da caldeirada, aveludado e pronto a regar todo o conjunto. 

Para entrar mar adentro veio o “peixe do dia” (22,50 euros), que neste caso era um naco de atum passado no ponto, tranches de corvina e robalo, todos fresquíssimos e marítimos. A acompanhar, terrina de batata e legumes grelhados escrupulosamente: curgete, beringela, abóbora, e um estupendo pimento carnudo (a época ainda está longe?). Das carnes chegou “o novilho” (23,50 euros), num medalhão rosado e suculento no interior, alto e saboroso, com um escalope de bom foie gras, um clássico e guloso puré de aipo, uma minipêra de água bêbada, em Porto, como o vinho a reduzir e a fazer molho juntamente com o caldo da carne, e ainda espargos crocantes. No “javali” (22,50 euros) houve o receio de algum excesso nos elementos. Além do lombo corado de forma irrepreensível e salpicado com pistácios sobre a capa vidrada do rolinho, vinha uma empada com javali estufado (não se deu conta no recheio, nem fez falta, a anunciada alheira de caça), um puré de castanhas magnífico, um estufado de cogumelos com os carnudos boletos e uns cubinhos de marmelos “crocantes” que pouco traziam ao resto. Uma equilibrada composição a soar a Outono que merece ovação. A carta de vinhos é bem variada e arrumada com critério, com os preços a estarem na média, mas sem disparates, e com a particularidade de ter uma excelente oferta de garrafas magnum (1,5 litros). Simpatia, conhecimento e disponibilidade no serviço, executado com descrição e competência tanto à mesa como nos vinhos. 

Lufada de ar fresco

Dos doces provou-se “a laranja” (8,50 euros) de Silves, que brilhou sob a forma de um coulis a coroar um cheesecake de chocolate branco, e num óptimo gelado com o citrino a mostrar a vertente aromática e ácida da casca, mas sem perder doçura. A “alfarroba” (8,50 euros) tinha a aparência de um bolo “bebinca”, com meia dúzia de camadas escuras da vagem a serem separadas por outras mais finas de amêndoa. Sobre o quadrado bicolor, uma barrinha suave de parfait de medronho, numa boa integração desta aguardente típica numa sobremesa. Um coulis de frutos vermelhos, alguns mirtilos e amoras davam um contraste à robustez do sabor do bolo. As preparações são cuidadas, valorizam os produtos e os pratos são apresentados de forma cativante e contemporânea, num espaço paradisíaco que podia ser oficiado por anjos. À falta deles, o chef Anjos faz a sua parte, contribuindo para que a experiência à mesa seja quase celestial, sobretudo se a opção recair no vantajoso menu de quatro pratos (49,50 euros) de escolha livre da lista entre todos os convivas. 

No regresso, a sinuosidade da estrada relembra-nos as prioridades que tivemos de ceder à ida, e que em certa medida nos remetem para alguns dos “obstáculos” que se cruzam com a restauração algarvia. Há demasiados locais com as prioridades invertidas - umas consentidas, outras impostas -, muitos sob o pretexto de serem típicos. A falsa ideia dos restaurantes “acessíveis” de peixe assado desmorona-se no preço e na fraqueza da oferta. Este Morgadinho é uma lufada de ar fresco na gastronomia da região e uma bofetada de luva ímpar para os que (falsamente) apregoam a “tradição”.

Nome
Morgadinho
Local
Lagoa (Algarve), Lagoa, Praia da Albandeira (Hotel Suites Alba)
Telefone
282380700
Horarios
Domingo, Segunda-feira, Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado das 12:00 às 15:00 e das 19:00 às 22:30
Website
http://www.suitesalbaresort.com/
Preço
45€
Cozinha
Autor
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