Fugas - restaurantes e bares

Helena Colaço Salazar

Travessia da Madragoa até Alfama

Por Fortunato da Câmara ,

Os proprietários do restaurante A Travessa deslocaram-se até outro bairro típico de Lisboa para um novo projecto. Na Travessa do Fado a ideia é "expor" os petiscos portugueses nas mesas no Museu do Fado - e não se pense que é só para "inglês ver".
A recente classificação do fado como Património Imaterial da Humanidade por parte da UNESCO trouxe um interesse redobrado pela canção de Lisboa. Se as casas de fado já eram um importante ponto turístico para quem visita a cidade e as suas intrincadas colinas, agora a curiosidade estrangeira cresceu em redor do que é o fado e as suas origens.

Esta descoberta conflui quase sempre para o largo do Chafariz de Dentro, porta de entrada do histórico bairro de Alfama, onde desde 1998 está instalado o Museu do Fado. Após algumas obras de ampliação e requalificação do espaço, o museu ganhou uma nova dinâmica nos últimos anos. Foi um dos impulsionadores da candidatura a património da humanidade e viu o número de visitantes aumentar para algumas dezenas de milhar.

Nos serviços de apoio na área da restauração também houve mudanças há alguns meses, com a concessão a estar agora a cargo dos proprietários do restaurante A Travessa, localizado no coração da Madragoa. Apesar de estar mais ou menos dissimulado dentro do Convento das Bernardas, onde divide o espaço com o Museu da Marioneta, A Travessa transformou-se ao longo dos anos num dos locais mais frequentados da capital, com uma clientela fiel conquistada dentro e fora de portas. Agora os responsáveis tentam amplificar o sucesso granjeado pela primeira casa, também noutro bairro típico e igualmente paredes-meias com um museu. A Travessa do Fado é o resultado da pequena travessia de cerca de três quilómetros que António Moita e Viviane Durieu fizeram para ligarem a Madragoa a Alfama com o profissionalismo que lhes é característico e uma proposta de cozinha um pouco diferente mas igualmente simples e segura.

A aposta aqui é centrada nos petiscos com diversas sugestões diárias que se vão revezando nas ardósias - tão na moda por estes tempos que já começam a ser cansativas - afixadas em vários pontos do restaurante. A esplanada é agradável, mobilada com robustas mesas de granito, e mesmo não tendo uma vista por aí além permite fazer uma refeição tranquila ou picar qualquer coisa num fim de tarde soalheiro sem ser necessário esperar por dias mais quentes.

Dentro do edifício ficam mais algumas mesas que aproveitam o melhor possível, embora de forma acanhada, a zona envolvente ao pátio exterior. Ao cimo da escadaria, umas vistosas poltronas de entalhe dourado dão um tom mais acolhedor ao ambiente frio que o espaço transmite. Sente-se que houve necessidade de atenuar essa característica ao pontuar a decoração com peças revivalistas como uma cadeira de barbeiro no esconso da escada ou um busto afrancesado no balcão da sala principal.

No piso superior, a omnipresença do vidro permite ter uma visão ampla sobre o Largo do Chafariz de Dentro, uma espécie de átrio de acesso ao labirinto de recantos fadistas que se podem encontrar a dois passos do museu. A parede menos envidraçada tem um longilíneo quadro negro onde estão gizadas as propostas do dia. Duas sopas, saladas de polvo, de grão com bacalhau, de pimentos ou de tomate verde são algumas hipóteses na parte mais petisqueira da ementa. Também se pode ir pelas tiras de choco, os pimentos padrón, uma açorda simples ou o camarão al ajillo. Mais substanciais são as sugestões de favinhas com enchidos, polvinho com azeite e alho, bochechas de bacalhau fritas ou uma caldeirada de bacalhau feita ao momento.

Restaurante utilitário

Lida e relida a ardósia encomendaram-se logo os quatro salgados sugeridos. Entretanto chegou o couvert (5,50 euros) com algumas fatias de pão saloio e uns pãezinhos razoáveis feitos na casa, com ervas e pedacinhos de enchidos, e que se esfarelavam como se fossem scones. Havia também azeite, manteiga de alho e azeitonas descaroçadas, tudo cabal e sem deslumbres. O destaque foi um queijo fresco (Queijaria das Romãs) de massa firme e sabor leitoso genuíno, acompanhado de um excelente doce de abóbora com amêndoas. No quarteto de salgados, brilhou o "pastel de massa tenra" (1,50 euros) com o tamanho certo para aconchegar o recheio, saboroso e bem composto, que não dava espaço para ventanias interiores, muitas vezes com a massa a ter ar a mais e substância a menos. Crocantes e bem apaladadas estavam as "bolinhas de alheira" (1,50 euros/2 unidades), que, apesar do preço anunciado, foram debitadas a 2 euros na conta. Com o "pastel de bacalhau" (1,50 euros) é que deve ter havido um lapso na cozinha (espera-se), pois na realidade eram duas pataniscas algo massudas, tipo sonho, e um pouco avaras em bacalhau. Bastante bom era o "rissol de camarão" (1,50 euros), com a massa um nadinha grossa de mais mas de recheio deliciosamente recompensador.

Ainda se petiscaram uns "peixinhos da horta" (3 euros) de fritura impecável, com as vagens rijinhas e viçosas. Seguiram-se as "lameijinhas" (6,50 euros) feitas à Bulhão Pato, equilibradas no sabor, no entanto um pouco murchas devido ao excesso de cocção. Ainda se aferiram umas magníficas "ostras do Sado" (4 euros/3 unidades) arranjadas com preceito, ou seja, sem vestígios do delicado acto de abertura, o que nem sempre acontece. Nas opções mais robustas, com acompanhamento à parte (não pedido), provaram-se as "lulas recheadas" (6,50 euros) que eram meia dúzia de saquinhos do molusco repletos com nicos de chouriço e outras carnes servidos num tachinho. Ao levantar da tampa, o aroma do puxado de tomate, pimento e cebola libertou-se no ar com agrado, confirmando que as lulas foram cozinhadas com zelo, apresentando uma textura macia e suculenta. A delicada "bochecha de porco preto" conseguiu o mesmo efeito (6,50 euros), fatiada e também apresentada em tacho, mas inesperadamente desenxabida e sem apuro no molho do estufado.

A lista dos vinhos cumpre os mínimos, elencando menos de quatro dezenas de itens, estando cerca de meia dúzia deles disponíveis a copo. O serviço é adequado e tanto nos preços como nos rótulos a oferta sugerida está dentro daquilo que habitualmente se encontra noutros locais. Em geral, o atendimento é prestável, atencioso e esclarecido entre os vários elementos da equipa de sala, facto que deve ser sublinhado. Um reparo que tem de ser feito é o facto de ter sido sugerida, sem ser solicitada, uma garrafa de água. A questão é que posteriormente foram cobrados 3 euros pela mesma. Talvez não fosse má ideia esclarecer bem os clientes que a água não é engarrafada, mas apenas filtrada no estabelecimento.

Nas sobremesas havia apenas três sugestões, o que tornou possível provar todas. O "bolo de chocolate" (4 euros) era uma fatia baixa, macia e ligeiramente húmida, riscada com uma agradável calda de chocolate. A "tarte de amêndoa" (4 euros) fugia ao trivial, surgindo com um apetecível recheio cremoso e um pouco melado no topo, em vez da habitual cobertura torrada. O "cheesecake" (4 euros) apareceu numa combinação clássica com uma rica cobertura de frutos vermelhos. O creme estava consistente, mas ao mesmo tempo aveludado, onde se sentia bem a presença do mascarpone.

A distância que separa estas duas "travessas" é maior que os cerca de três quilómetros que dista entre as duas moradas. Está assumidamente uns furos abaixo da casa-mãe na sua proposta de cozinha baseada em pratos comezinhos e doses moderadas, mesmo tendo aos fins-de-semana os "mexilhões à belga" que popularizaram A Travessa na Madragoa. No entanto, A Travessa do Fado em Alfama vale a visita. É um restaurante utilitário não pelo preço, mas por ser do interesse de qualquer lisboeta ter um espaço com petiscos de qualidade servidos ao longo do dia, sem horários rígidos, e que além disso está aberto aos domingos. Esta sim, uma aposta "à desgarrada", que infelizmente ainda não tem resposta à altura na cidade do fado.

Nome
Travessa do Fado
Local
Lisboa, São Miguel, Largo do Chafariz de Dentro, 1 - Museu do Fado
Telefone
218870144
Horarios
Quarta a Domingo das 12:30 às 23:00
Cozinha
Trad. Portuguesa
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