Fugas - restaurantes e bares

Florio Anthonydr

A mesa que quer revolucionar a Valónia

Por Fortunato da Câmara ,

Sang-Hoon Degeimbre chegou à Bélgica órfão com cinco anos de idade, vindo da Coreia do Sul. Quatro décadas depois é a cara que está a revolucionar a cozinha da região francesa através do seu fabuloso L’Air du Temps. A tendência só agora está a começar…

A proposta gastronómica de Sang-Hoon Degeimbre não dá margem para tergiversar. Ir ao L’Air du Temps é encontrar uma boa síntese das tendências do momento na cozinha mundial. Produtos sustentáveis de fornecedores locais, horta particular com vegetais e ervas pouco óbvias, tecnologia de vanguarda associada a técnicas clássicas, e uma selecção de bebidas não alcoólicas para conjugar com um menu desafiante nos sentidos e ligações gustativas que pretende fazer de uma ida ao restaurante uma experiência memorável. Será que o objectivo é alcançado? 

Tudo começa com a própria localização do espaço, em Liernu, uma pequena localidade perdida nas planícies belgas que faz parte da província de Namur, na região ?da Valónia. Depois de quinze anos numa localidade vizinha, uma antiga exploração agrícola foi reconstruída e inaugurada em Janeiro de 2013 para receber clientes e até hóspedes (há cinco quartos para alugar), que queiram ter uma experiência “W”, ou seja, sentir e conhecer o que é a Wallonie (Valónia), região francesa da Bélgica. 

O caminho é repousante nas suas múltiplas visões. Campos de trigo ainda verde, bosques com o condão de encantarem ou terrenos de cultivo geometricamente tratados são apontamentos bucólicos de um percurso que nos retira da ambivalência em que vive Bruxelas, a cerca de 60 quilómetros de distância. Ali perpassa um pouco de França, mas segundo o modus vivendi dos valões. A chegada é coincidente à de outros clientes, pois os jantares têm hora fixa de reserva. Alguns trocam olhares vagamente cúmplices de quem sabe ao que vem — ou que espera ser surpreendido.

Do restaurante faz parte uma horta com alguns hectares onde são cultivados vegetais e ervas sob a supervisão de um jardineiro que é também fornecedor da casa. É desse imenso jardim hortícola que vem um cozinheiro, acabado de colher alguns ingredientes que traz numa taça, transportada no regaço do avental. Lá dentro a sobriedade é palavra de ordem na decoração, com as mesas revestidas com toalhas de pele e apenas uns solitários nas paredes. Um corredor cruza diversas salas de pequena dimensão, estando a cozinha num dos extremos. Sobre cada mesa, uma pedra com uma espécie de “folha” escura incrustada, estilizada e crocante, a parecer-se quase com um bibelot em cerâmica. Era um “pão de cebolas” com cereais de sabor presente a cebola caramelizada. Seria o primeiro de vários “mimos” do chef que iriam anteceder o menu degustação “Genèses” (95 euros, 6 pratos).

Uma perfumada e suavemente ácida água de lúcia-lima foi entretanto servida para refrescar o palato. Era uma das bebidas sem álcool produzidas no restaurante com a ajuda de uma potente máquina de ultra-sons que em poucos segundos ou minutos extrai a frio o aroma e sabor de diversos ingredientes, sem oxidações ou alterações de gosto. Experimentaram-se outras durante a refeição, que pode ser acompanhada com diversas águas aromatizadas de acordo com os pratos. 

O desfile dos chamados “aperitivos do jardim” começou com “banana e salsa”, que era um engenhoso merengue de salsa, a fazer lembrar um suspiro, recheado de creme de banana, cuja espuma volátil se eclipsou ao tocar o céu-da-boca, deixando as papilas saborearem com mais tempo o leve creme do fruto. Ao lado estava a “salva, alho negro e manjerico”, com uma folha da erva aromática frita, um pouco de maionese do alho negro de sabor fumado e uma folhinha de manjerico. Em duas tacinhas vinham “sumo de salada e creme fumado”. Numa, o molho de uma salada verde feita com folhas de mostarda onde se denotavam os sabores a soja, tomate verde e um toque de wasabi, com a riqueza e diversidade de sabores a ser cortada por um pouco de natas. Noutra taça, duas minicebolas com raízes, uma roxa, outra branca, com queijo de cabra e algas. Sob o nome de “pedaços vegetais” vieram a “couve-flor e creme de gema de ovo com miso”, onde o cremoso puré do legume tinha a textura “gorda” de uma gema, com a própria a fazer de cama misturada com miso (soja fermentada), e no topo a couve-flor ao natural, esfarelada para dar “crocância” ao conjunto. As “cenouras marché de Paris” traziam esta peculiar variedade miniatura em estilo pickle e em puré, com uma manteiga de atum fumado à asiática. Havia um leve sabor cárneo no prato que deveria ser do atum, no entanto a presença era bastante discreta para o anunciado. Algumas preparações resultavam melhor que outras na ligação inusitada de ingredientes, mas cumpriram largamente a ideia de desafiar o palato para outras combinações e texturas diferentes, e sobretudo trazendo sempre um pouco de surpresa na apresentação. Fechava aqui a parte dos chamados amuse bouches.

Antes do primeiro momento da degustação veio uma água de “pão torrado e ruibarbo”, cujo primeiro elemento teve apenas uma função aromática, sendo predominante o sabor dos magníficos talos de ruibarbo, vegetal da família das acelgas (que nos Estados Unidos é classificado como fruto) mais usual em receitas doces que salgadas. Chegou então uma caçarola de ferro com “mexilhões e batata frita”, eufemismo para duas unidades que faziam o mimetismo do clássico belga moules et frites. A reprodução das cascas do bivalve através de batata frita preta abrigava um gordo mexilhão imaculadamente limpo e cozido ao vapor, com um molho que remetia para a mostarda de Dijon. Divertido e equilibrado. O peixe foi um arrojado “linguado, ruibarbo, azedas e oxalis”, onde os lombos do pescado vinham enrolados em forma de charuto, com folhas de oxalis ao longo do cilindro a darem um toque ácido e azedinho, e um pouco de musgo a trazer um pouco mais de mar. O molho era feito com caldo de ruibarbo e um pouco de baunilha e na mesa era colocado um granizado feito com flores de oxalis e azedas. Provando tudo em simultâneo resultava, a solo, o sabor delicado do linguado com o molho de baunilha e o ruibarbo sofria com a audácia.


Refeição de alto nível
Antes da carne vieram uns excelentes “legumes de Primavera” numa composição bela com espargos brancos e verdes, cebolas e cebolinho, kimchi (couve fermentada típica da Coreia do Sul), nabo, mini-alho-francês, tudo temperado por óleo de levitísco, e servido por várias técnicas (assado, cozido, grelhado, conserva de vinagre), com um resultado memorável, sendo um dos pontos altos do menu. Bebeu-se uma água de “gengibre com pimenta de Sichuan” com o sabor cítrico da raiz e o aroma mentolado da pimenta a fazerem uma ligação feliz. 

Outro grande momento foi sem dúvida o cestinho de bambu que trazia um “pão de sésamo preto (bun), e pombo ‘borracho’ de Jean-Yves Bruyère”, com a pequena sandes de miolo fofo e tom acinzentado a explodir em sabor ao trincar-se o suculento peito de pombo (de um criador local), de pele crocante e um tempero que remetia para sabores asiáticos. Finalizou-se com a “vitela na pedra, declinações de alcachofra e alcaçuz”, com uma fatia de um naco de carne, rosado e preparado de forma simples, apenas com sal, para se sentir a qualidade e sabor da matéria-prima, que era notório. A alcachofra com várias texturas a surgir em puré, em lamelas crocantes desidratadas, descascada ao natural e grelhada, e ainda a companhia de minicogumelos. A unificar o prato, um fabuloso e inesquecível molho de carne enriquecido com xarope de alcaçuz, que lhe dava um toque ligeiramente adocicado e de especiarias — que ia muito bem com a água de quatro especiarias entretanto servida. 

Além da opção pelo menu de águas pode escolher-se de uma carta de vinhos bastante completa e abrangente em termos de regiões vínicas, onde para além de alguns clássicos franceses foi sugerido, e experimentou-se, um espectacular branco da Bulgária, mas também um belo tinto do Dão para os pratos de carne (já agora, parte do faqueiro era de origem portuguesa). Serviço sóbrio e impecável, absolutamente esclarecedor e a ajudar os clientes a tomar decisões de forma descontraída, mas informada. 

Uma refeição de alto nível onde a sobremesa ficou um pouco atrás do resto, com o “morango de Thorembais, ruibarbo e texturas de sabugueiro” a resultar num fino aro de massa que “guardava” um picadinho de ruibarbo, morangos e uma espuma com aroma de sabugueiro e flores de sabugueiro, complementada por uma água de morangos com cerefólio. Leveza, sabores directos e bem casados, mas esperava-se um pouco mais de complexidade e inovação atendendo ao que já se vira até ali. Em parte esse desencanto ficou resolvido com os petit-fours do café: uma agradável minitarte de café, um chupa-chupa de chocolate recheado com ganache de pimento vermelho e um creme doce de espargos brancos. 

Durante toda a refeição foi sendo referido que a origem de vários produtos era a região da Valónia, facto que se deve ao movimento Genération W (de Wallonie) que o chef Sang-Hoon Degeimbre fundou em Setembro juntamente com outros nove cozinheiros, com o objectivo de consumir produtos locais e trabalhar em permanência com um mínimo de cinco produtores da região. À semelhança do que já acontece noutros países, a ideia é revolucionar a forma de interagir com o meio físico e social que rodeia os restaurantes, tornando-os mais sustentáveis e polarizadores da economia local.

O nome L’Air du Temps não podia ser mais adequado a este propósito. O restaurante está a cumprir os desígnios do manifesto “Geração W”, tem duas estrelas no polémico guia vermelho (penso que ajustadas) e a lista de reservas está sempre composta com alguns dias de antecedência. Sang-Hoon Degeimbre é um órfão sul-coreano que chegou a ser escanção e se transformou num cozinheiro autodidacta de sucesso. Os “ventos da época” na senda da vanguarda estão a soprar-lhe de feição.

Nome
L’air Du Temps
Local
Estrangeiro, Bélgica, Rue de la Croix Monet, 2 (Liernu, Eghezée)
Telefone
+0032 81 81 30 48
Horarios
Segunda a Sexta das 11:00 às 22:00
Quarta a Domingo das 12:00 às 13:30
Website
http://www.airdutemps.be/
Preço
125€
Cozinha
Autor
Música
Acid Jazz
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