Fugas - restaurantes e bares

  • José Sarmento Matos
  • José Sarmento Matos
  • José Sarmento Matos
  • José Sarmento Matos

Mural com estórias e um bife sem memórias

Por Fortunato da Câmara ,

A odisseia da cerveja ao longo dos tempos, ou um painel de azulejos onde se contam "contos" através dos traços de irreverência de Júlio Pomar. Ingredientes de sobra para se visitar o Museu da Cerveja, que sem lamentações assume no "mural" da casa as suas pretensões.
Passou cerca de um ano desde que alguns edifícios institucionais do Terreiro do Paço ganharam vocação comercial. A ala norte cumpriu-se como nascente ao ver um leito de restaurantes percorrer as suas arcadas em direcção ao rio. Dos vários estilos que por ali surgiram, o de maior envergadura económica e espacial é o Museu da Cerveja. Fica num ângulo da praça onde tem como ilustre vizinho o vetusto Martinho da Arcada. As instalações ocupam um espaço amplo, onde em tempos já se terá discutido muita política e finanças, para agora ser um lugar convivial, dado aos prazeres da mesa, onde até é possível conhecer um pouco da história da cerveja.
 
O chamariz da casa é um pequeno museu situado no primeiro andar, onde, ao percorrer algumas salas dispostas num mezanino que se debruça sobre a área de refeições, se conta a história desta bebida ao longo dos tempos. O percurso aborda os primórdios do fabrico artesanal para depois explicar a evolução da cerveja em Portugal e noutros países lusófonos. Há inúmeras embalagens de várias décadas e referências a marcas desaparecidas ou apenas esquecidas, sobretudo dos que viveram em África. No fim da zona expositiva há uma recriação da produção artesanal de cerveja por monges, numa adega com um toque fantasmagórico graças aos sons gregorianos e à iluminação débil. O ambiente soturno acaba por ser aligeirado com a oferta de uma caneca de cerveja geladinha para animar.
 
Quem não quiser fazer a incursão museológica (entrada paga) pode ir apenas ao restaurante. Como seria de esperar, há um bom naipe de escolhas dentro do universo cervejeiro, passando por vários tipos de fermentação ou fabrico de origens diversas. No meio disto, as propostas de vinho acabam por ser episódicas. Destaque para as "imperiais" que chegam em copos de vidro duplo, bem engendrados para manter o frio, e com a parte interior a simular o gargalo invertido de uma garrafa de 33cl.
 
Antes de se apreciarem estes detalhes, já a decoração tinha prendido as atenções pois a grandeza, mas também o conforto do espaço, com boas cadeiras, lustres e cortinas vistosas são elementos que se evidenciam. Há mesas circulares dentro de estruturas de madeira em forma de ovo e uma outra quadrangular para 14 pessoas numa discreta zona reservada.
 
Na ementa pode encontrar-se a oferta clássica de cervejaria. Mariscos diversos, alguns pratos como bacalhau à Braz, açorda de marisco e vários bifes: "à Marrare", "à portuguesa", ou "à museu" (com molho de "queijo da serra"), entre outros. A primeira boa impressão foi causada por uns saborosos e competentes "pastéis de bacalhau" (1,95 euros/unidade), de fritura crocante e massa leve bem calibrada na disputa "bacalhau versus batata". Parece lógico, mas convém referir que felizmente venceu o protagonista - um cada vez mais raro "final feliz". O "camarão cozido" (48 euros/quilo) de tamanho 30/40 era de estirpe marinha recomendável. Rijos q.b. e com cristais de sal à superfície, deram boa sequência à abertura petisqueira. Igualmente agradável de sabor estava a "meia desfeita de bacalhau " (7,50 euros), com grão de demolha (sem cedências ao facilitismo da lata) e lascas de bacalhau à altura, teve o contra de vir gelada (fresca teria de estar para se manter conservada), com o frio excessivo a anular-lhe parte dos sabores até que atingisse uma temperatura aceitável.
 
A "selecção de pão tradicional" (2,80 euros) era de qualidade corriqueira, um pouco dissonante daquilo que a descrição parecia indicar. Outro empolamento nas descrições verificou-se na "cataplana rica do mar" (18 euros), que era composta por gambas, mexilhões, amêijoas e rabos de tamboril, cozinhados com acerto na consistência dos ingredientes, sem que os bivalves tivessem mirrado. Da base clássica de cebola, tomate e pimento resultou um caldo agradável, valorizado pela exsudação do marisco, embora me pareça um exagero apelidar de "rica" uma preparação trivial como esta. Num plano mais cativante estiveram os "filetes de linguado com açorda de coentros" (14 euros), de tamanho médio e a virem enrolados num generoso trio de fritura impecável, e com a açorda de coentros a preencher-lhes o interior de forma saborosa e visual.
 
Visita agradável
Estando numa cervejaria de Lisboa onde são propostos alguns bifes típicos da cidade, a expectativa em relação ao histórico bife à Jansen era a melhor, esperando-se que a carne viesse frita num pouco de banha e na gordura libertada por pedaços de toucinho e mal passada no ponto de cocção. Na mesma frigideira deveriam passar as batatas "rijadas" depois de terem sido cozidas com casca, peladas, cortadas e deixadas esfriar até "enrijecerem". Os despojos da fritura da carne e das batatas seriam então ligados com uma noz de manteiga para fazer o respectivo molho do bife que celebrizou uma cervejaria lisboeta nos séculos XIX e XX.
 
Esta descrição introdutória justifica-se porque o "bife à Jansen" (16 euros) do Museu da Cerveja não chegou sequer a ser uma versão da receita original, mas antes uma aversão à sua memória. O que chegou ao prato foi um corte da vazia com cerca de 200gr e menos de 1cm de altura (passado de mais) quase a nadar numa espécie de manteiga clarificada, e com a carne a soltar fragmentos de pão ralado (?!), acompanhado de batata em palitos frita - boa, diga-se, mas fora do esperado. Perante isto, prefiro pensar que são avessos ao "bife à Jansen" em vez de usar eufemismos inversos e dizer que afinal é ignorância, já que a receita está publicada em vários livros de cozinha e de gastronomia. É pena que o trabalho meticuloso que foi feito na parte museológica relativo à cerveja não tenha tido o mesmo empenho nas receitas emblemáticas, trazendo para a lista bifes de que não rezam quaisquer memórias - com a ressalva de ter comido aqui há largos meses um bife à Marrare que, mesmo sem deslumbrar, cumpria os requisitos para se chamar como tal.
 
Nas sobremesas, o que despertou mais curiosidade foi o "fofo de chocolate com cerveja Bohemia" (4 euros), em que se sentia o travo da cerveja na composição do bolo esponjoso e húmido, mas que acabou por resultar num conjunto desequilibrado devido à doçura incisiva do chocolate, que, em lugar de transmitir nuances de sabor, congestionava o palato. No caso da "mousse de chocolate branco" (3,70 euros) faltou um contraste que dominasse o monte cremoso de manteiga do cacau com arabescos de chocolate negro que foi apresentado. O lado enjoativo deste "branco", que na realidade não é chocolate (apesar da designação); precisava de acidez, ou de adstringência, para se salvar da concentração de açúcar da manteiga.
 
Este Museu da Cerveja é um local de aparência espectacular e que traz animação a esta zona de Lisboa. O investimento é ambicioso e valorizador desta praça de comércios de outrora, e por isso faz-se pagar bem. Não há, portanto, motivos que o dispensem de ser criterioso naquilo serve. No conjunto ambiente, serviço e oferta, o Museu da Cerveja é um restaurante que se visita com agrado. Quanto à parte gastronómica, de momento dominam algumas pretensões sobre a realidade dos pratos, e no caso do bife a resolução é óbvia: pesquisar na história.
 
De parabéns está a gerência por ter investido recentemente num belíssimo "mural" que Júlio Pomar criou em exclusivo para o espaço. A obra, denominada Contos murais, exibe figuras surrealistas com um pouco de fantástico à mistura, onde o vermelho de uma fatia de melancia mordida ressalta do vistoso painel de azulejos traçado a azul sobre fundo branco. A memória descritiva que o pintor fez da obra até pode ser extrapolada para ajudar a perceber parte do conceito deste Museu da Cerveja: "É apenas um "mural" que não pretende ter uma mensagem "moral" pois foi pintado como um motivo de entretenimento, número de saltimbancos, espectáculo de rua. É quanto basta!".
Nome
Museu da Cerveja
Local
Lisboa, São Nicolau, Terreiro do Paço (Ala Nascente, 62 a 65)
Telefone
210987656
Horarios
Todos os dias das 09:00 às 02:00
Website
http://www.museudacerveja.pt
Preço
30€
Cozinha
Autor
Espaço para fumadores
Sim
--%>