Fugas - restaurantes e bares

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Oásis numa ilha deserta por revelar os seus sabores

Por Fortunato da Câmara ,

É um restaurante vistoso em qualquer parte do mundo e está entre os melhores dos Açores - em São Miguel talvez seja actualmente o melhor. É seguramente um dos projectos mais arriscados da região e só por isso já merece aplausos, mas atenção: come-se por aqui muito bem, mesmo!.
Em Outubro completará quatro anos de um percurso que tem vindo a agitar o marasmo da restauração micaelense. Se há região onde a gastronomia revela as idiossincrasias de um povo é nos Açores. Através da mesa, cada ilha transmite as suas particularidades geográficas, históricas e sociológicas. No caso de São Miguel, existe uma forte componente familiar no receituário local, o que o mantém mais ou menos inacessível aos visitantes.
 
Se quisermos conhecer a chamada "cozinha das avós" ou a "cozinha de casa", é recomendável conhecer uma família (de preferência onde haja uma avozinha) que permita ter acesso a pratos como uns chícharros recheados com bolo da sertã, os torresmos de molho de fígado, peixes de bom porte assados no forno,enquanto outros mais delicados são fritos a preceito, ou umas leves e fofas "malassadas", e não filhoses "mal-amanhadas", que não merecem menos do que este desabafo eufemístico pegando numa expressão local.
 
À falta desta conjugação cósmica de factores, e da facilidade em encontrar versões acima da média destas e de outras boas receitas locais, fica-se entregue à oferta geral, muito circunscrita aos filetes de abrótea, ao bife à regional, a diversos peixes grelhados e pouco mais. Estou a pensar nos restaurantes de gama média, não nos mais populares do dia-a-dia, onde se pode comer um polvo guisado, um arroz de lapas ou um estufado de vaca - o único senão é o habitual excesso de "pimenta da terra", com o poderoso condimento a cilindrar o protagonismo de outros ingredientes.
 
Neste contexto pouco entusiasmante, é motivo de prazer redobrado descobrir um espaço como o Paladares da Quinta. Uma construção moderna e de linhas sóbrias situada numa quinta da Lagoa, perto da via rápida, e que dista de Ponta Delgada cerca de uma dúzia de quilómetros. A utilização do vidro em grande parte do edifício deixa-nos o jardim que circunda a sala de refeições à mercê no nosso olhar. A visível qualidade das instalações e a elegância da decoração em tons de verde marcam pontos logo à chegada.
 
O cuidado que foi posto no projecto tem eco no profissionalismo do serviço, com a lista a ser consultada num tablet onde se adiciona o pedido enquanto se vêem fotos dos pratos (fraquinhas para a apresentação real) ou dos rótulos das garrafas. Neste ponto há um reparo a fazer. A oferta de vinhos é razoável, e a preços competitivos nalguns casos, mas a lista é confusa, por não estar dividida por regiões, nem o ano de colheita estar visível de imediato, tendo que se consultar as fichas de cada garrafa, o que é pouco prático. Temperaturas de serviço a melhorar e copos em linha com o exigível.
 
Na extensa lista pode encontrar-se um pouco de Portugal nas alheiras de Lamego, nos pezinhos de coentrada, nos bacalhaus à Brás ou à Zé do Pipo, na massada de cherne, no leitão à Bairrada, no coelho à caçador, e a lista continuava... A ideia, no entanto, era explorar mais a vertente regionalista do menu.
 
Pediu-se então um típico "queijo Branco" (1,75 euros) feito a partir de leite de vaca, acompanhado por um pouco de pimenta da terra - equilibrada, sem queimar o "território" glossiano - e um óptimo doce de abóbora. Ambos vinham para espicaçarem o palato e desafiarem a suave neutralidade do queijo - resultado alcançado com satisfação. A "tiborna de pão" (2,50 euros) era uma estaladiça fatia de bom pão, a aguentar o azeite sem empapar, esfregada com alho e salpicada com coentros. Servida por inteiro veio uma "morcela com ananás" (5 euros) de boa produção, com cominhos q.b. e de fritura crocante sem gorduras indesejadas. A companhia de cubos de ananás que se tornou canónica nas últimas décadas, apesar de ser moda recente, traz frescura e contraste ao enchido, e ao mesmo tempo promove o emblemático fruto da ilha.
 
Fora da lista estava o "queijo O Morro" (2,40 euros) que foi sugerido e causou muito boa impressão. Um queijinho alto de forma cilíndrica (cerca de 6cm de diâmetro), de pasta mole amarelada a exibir alguns olhos e consistência delicada sem ser líquida. O sabor ligeiramente herbáceo e a textura cremosa foram uma agradável surpresa, num produto recente originário da ilha do Faial e que com tempo pode valorizar a nossa escassa fileira de queijos de vaca de qualidade.
 
Visitar é preciso
 
Nos peixes, a aposta foi de risco nas "barrigas de atum assadas no forno a lenha" (10 euros), em que, como era expectável, a "carne" não vinha rosada no interior, mas ainda assim havia suculência entre as lascas, a denotar a categoria do espécime e o risco do tempo limite de forno. A companhia de legumes salteados e de umas consistentes migas cortadas em triângulos foram um bom complemento para absorver o molho do assado. Um passo em frente na melhoria de uma receita tradicional foi dado no belíssimo "arroz de lapas" (14 euros) que chegou à mesa quase a rescender a mar. Sem usurpação de sabores por parte da "pimenta da terra" (presente mas discreta), e com as pequenas lapas da ordem a saberem ao que são (o que é difícil de se encontrar), num arroz caldoso e refrescante, temperado com açafroa e rama de funcho picada e sabor marítimo pronunciado quase a parecer levar água do mar.
 
A incursão carnal começou numas "iscas de fígado" (11 euros) de vitela, bem arranjadas e cortadas muito fininhas, temperadas com um pouco de colorau e alho e de fritura breve em azeite que as deixou tenras e saborosas. Batata frita, arroz basmati e ovo estrelado foram um trio um pouco exagerado e desequilibrado para acompanhamento. De grande qualidade era a "vitela assada à Paladares da Quinta" (15 euros), a fazer justiça aos predicados da boa carne açoriana (mais difícil de encontrar do que se pensa), num assado simples onde sobressaía com parcimónia o sabor a hortelã, de duração longa e calor brando. Pedaços do acém redondo, ligeiramente caramelizados à superfície, desfiavam-se sem esforço na companhia de arroz basmati regado com o molho da assadura, e a guarnição anterior de legumes - cortados em juliana (tirinhas de curgete, alho-francês, cenoura, couve lombarda, feijão-verde e pimento) cozidos e salteados a ponto.
 
Na doçaria, as "queijadas da casa" (1 euro/cada), que eram umas típicas queijadas de leite, cumpriram os preceitos de estarem tostadinhas e húmidas. Um "pudim de feijão" (3 euros) muito bem feito, apresentado numa fatia baixa e robusta, com as gemas a darem-lhe um lado guloso irresistível. Proposta inovadora foi o "pudim de queijo da Ilha" (3,50 euros), com um pouco de pão na base e creme de consistência enqueijada, em que se sentia o toque salgado e uma muito leve adstringência do queijo. Uma sobremesa diferente e provocadora das papilas gustativas a fazer-nos balançar entre o doce e o salgado. O célebre "ananás" (3,50 euros) de São Miguel trazia a doçura e o perfume próprios de um fruto no auge da época.
 
A coragem de levantar um projecto desta envergadura num mercado que não tem enraizado o hábito de comer fora, e onde o preço conta sempre no momento da escolha, deve ser premiada com uma visita a esta casa, que poderia servir de farol e iluminar algumas aventuras erráticas que por ali andam. Certamente que a tarefa deve obrigar a esforços titânicos para manter a qualidade, que tem melhorado desde a primeira visita que fiz em 2010, e que penso que deve orgulhar o casal de proprietários - ela, uma jorgense que se ocupa da sala e dos doces, ele alentejano e cozinheiro experiente. O resultado está à vista quando se faz uma refeição de grande nível num ambiente sublime. Cozinha tradicional portuguesa e regional açoriana, executadas com dedicação e empenho.
 
Apesar de haver mais alguns (poucos) locais com interesse espalhados pela ilha, este Paladares da Quinta é de facto uma espécie de oásis no meio da escassa oferta existente. Outro valioso contributo é o da Escola de Formação Turística e Hoteleira de Ponta Delgada, que organiza anualmente um ambicioso e competente festival gastronómico. A adesão crescente em redor deste evento com todos os jantares esgotados, e que a Fugas testemunhou, além de acrescentar novos sabores, cria massa crítica para que se possa passar dos oásis ocasionais para um conjunto de espaços de qualidade consistente. Com um público deserto por descobrir os sabores da região, a restauração micaelense e açoriana tem de ir ao encontro das suas raízes e não continuar a ser apenas uma miragem. À sua volta, o mar, as paisagens e o terroir; são bem reais e de excelência.
Nome
Paladares da Quinta
Local
Lagoa (São Miguel), Lagoa (São Miguel), Canada de Santa Bárbara, 40
Telefone
296965306
Horarios
Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado das 12:00 às 15:00 e das 19:30 às 22:00
e Domingo das 12:00 às 15:00
Website
http://www.paladaresdaquinta.pt
Preço
25€
Cozinha
Regional
Espaço para fumadores
Sim
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