Fugas - restaurantes e bares

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A carne pode ser uma arte à parte

Por Fortunado da Câmara ,

Um talho que é restaurante que é um talho. O lema da casa é este: "Quem parte e reparte e dá a melhor parte, vive a vida com mais arte". Acrescentamos que manter um bom talho como este é um ofício que dá trabalho mas que traz um prazer celeste.
Ser talhante parece ter-se tornado cada vez mais um trabalho e menos um ofício. O preceito em desmanchar peças corpulentas de novilho ou de porco, dividindo-as nas diversas partes e executando os cortes indicados para cada uma, parece coisa óbvia, mas exige um saber de experiência feito. O que se vê é surgirem talhos nas grandes cidades com uma panóplia de preparados bonitinhos e engalanados prontos a irem ao forno. Produtos sem alma, feitos com carne processada, onde a máxima parece ser "carne picada com tudo", restando apenas a tarefa de a incorporar em tâmaras, espinafres, requeijão, tomates ou outros.
 
A maturação da carne é inexistente, quase um assunto tabu. Este processo de "amadurecimento" que consiste em manter durante alguns dias peças de carne fresca a temperatura e humidade controladas com o objectivo de lhe acentuar o sabor e amaciar a textura, só faz sentido em carnes bovinas e de qualidade certificada. É um processo que exige o máximo rigor, que não pode ser visto como uma moda, mas antes como forma de valorizar as nossas excelentes carnes, que infelizmente são muitas vezes consumidas a destempo, sem revelarem todo o seu potencial gustativo. Onde ficam, então, a arte de cortar a peça no sentido e no veio certo, de "guardar" a matéria-prima para a servir no ponto ideal de maturação ou a destreza de desossar uma ave sem que perca a forma inicial?
 
Vistas as coisas por este prisma, abrir um talho pode ter tanto de banal, e ser "apenas mais um", como de inovador ou irreverente, passando assim a ser "o talho". Parece ter sido esta última opção que motivou Francisco Martins, também conhecido como Kiko, a inaugurar em Março um espaço inovador na zona de São Sebastião, bem no centro de Lisboa, a que chamou O Talho. O nome tem tanto de simples quanto de ambicioso, pois fica a ideia de querer estabelecer um paradigma no mercado das carnes. Com um singelo néon vermelho do exterior, passa por ser um entre tantos outros talhos que há na cidade, só que ao assomar as escadas de acesso à loja entra-se num ambiente mais próximo de uma boutique com recepção e direito a uma simpática recepcionista que dá as primeiras explicações acerca do espaço.
 
A zona de loja tem um horário alargado onde se podem comprar carnes certificadas cortadas a rigor e arranjadas com preceito. Claro que há alguns preparados de carne para se fazerem refeições simples e de custo controlado, como um rolo de alheira envolto em massa kataifi (tipo cabelo de anjo), ou umas salsichas merguez (à base de borrego e especiarias com origem no Magrebe) feitas na casa, e, claro, uns hambúrgueres (para não perder a concorrência de vista), que podem vir temperados com parmesão e tomate seco ou cebolinho e molho de soja. A oferta complementa-se com puré de batata com manteiga noisette, ou couscous de legumes e molhos diversos. Este elencar de opções serve para dizer que a qualidade geral dos produtos é acima da média e tudo o que está à venda no talho pode ser servido na sala...
 

Desfile carnal de qualidade
 
...não na de sua casa, mas sim na outra parte interessante do projecto, ou seja, no restaurante que secunda o talho. Um espaço sóbrio e bonito com uma das paredes a exibir garrafas vazias arrumadas de forma esteticamente antagónica, enquanto ao lado um conjunto de pratos antigos compõe um curioso painel de cerâmicas na companhia de algumas máquinas fiambreiras de colecção. É por aqui que o jovem chef Kiko Martins dá largas à sua imaginação, enriquecida por uma viagem por diversos países onde se propôs "comer o mundo". Vivência que acaba por se reflectir no cosmopolitismo de um menu onde naturalmente só existe carne.
 
No "couvert" (1,50 euros/pax) vinha pão torrado e de sementes, boas manteigas, uma de soja e alho e outra de ervas, e um memorável paté de fígados de aves com pimenta de Sichuan. Antes das entradas, veio como amuse-bouche uma salada caprese em versão micro, composta por um gomo de tomate, o queijo mozzarela em tamanho bocconcini (tipo ovo de codorniz) e uma lasca de presunto de Chaves. Porção que se comeu de uma só vez sentindo uma saborosa comunhão entre os elementos.
 
O serviço é cordial e atento, mas percebe-se que por vezes anda a tactear os ritmos e a onda da clientela, mais heterogénea ao almoço que ao jantar, a balancear entre a vertente negócios e o lado convivial de pequenos grupos ou casais. Duas notas de cariz logístico. A opção de não ter toalhas parece-me um pouco desajustada do ambiente geral da casa, onde, por exemplo, se destaca a elegância do faqueiro preto cuja originalidade se perde sobre a madeira escura das mesas.
 
Outra situação prende-se com o facto de servirem água da torneira filtrada (2,25 euros) quando se pede uma garrafa, cobrada como se fosse mineral. Claro que por ser filtrada há um pequeno custo adicional, mas não é sensato valorá-la como se fosse mineral, uma prática que, infelizmente, começa a fazer escola noutros restaurantes. Na parte dos vinhos não se compreende o porquê de a lista não ter datas de colheita; o serviço é executado sem mácula em relação a copos, procedimentos e temperaturas. O capítulo da oferta é que, apesar de ter alguns rótulos com perfil para carnes, está um bocado curto de opções, sobretudo porque a bitola de preços é alta.
 
Para petisco veio "o sr. salgadinho" (1 euro/cada) onde brilharam uns deliciosos "croquetes de cozido à portuguesa", uma ideia simples e muito feliz. Uma das entradas foi um rebuscado "foie gras com bolo de mel" (14,20 euros) onde um guloso medalhão alto de foie gras mi-cuit prensado casava nos céus com bolo de mel esfarelado (tipo madeirense) trabalhado com chocolate, em que se sentiam apenas notas gustativas sem se sobrepor a nada, e uns gomos de tangerina para refrescar o palato.
 
Outra maravilha estava o "carpaccio de novilho" (9,70 euros) que, aparte o "pleonasmo gastronómico" de referir "novilho", tratando-se de um carpaccio, fazia uma fusão intercontinental entre a carne de grande qualidade e três quenelles de um guacamole clássico, além de parmesão em lascas e rúcula. Menos interessantes estavam as "merguez" (7,90 euros): três salsichas em pontos de cozedura disformes, estando umas mais suculentas que outras. Muito boa era a parceria de pastéis de grão (falafel), pasta de beringela (babaganoush) e molho de iogurte e hortelã (tzatziki).
 
O desfile carnal começou em alta com o "linguini de rabo de boi" (16,60 euros) em que, por imperativo da cozinha, a pasta foi substituída por uns óptimos gnocchi salteados com a forma de pequenos cubos, de aparência e sabor caseiros, a sentir-se mais o gosto da batata que da farinha, como convém. A carne vinha desfiada e gulosa num estufado rico à base de tomate e vinho tinto, bem condimentado e melhor apaladado.
 
O "bife de vitela maronesa" (21,70 euros) revelou o esplendor que pode haver numa carne certificada com tratamento criterioso. Corte alto da vazia, com sabor delicado mas profundo e um belo tom rosado no interior. A companhia era repartida entre umas saborosas batatas aos palitos fritas, farofa de bacon e uma taça com salada de alfaces diversas. A fechar veio "bife de novilho maturado" (39,20 euros), cerca de 700gr de carne, de origem alemã e com 20 dias de maturação, numa dose copiosa que deveria ter a indicação de ser para duas pessoas. Veio também um corte da vazia, que infelizmente apanhou uma zona fibrosa que prejudicou a tenrura esperada, com o vistoso naco a vir cortado em tranches suculentas salpicadas apenas com sal.
 
As sobremesas surgiram num nível elevado. O "ovo estrelado" (5,80 euros) criava um efeito mimético do real com a clara a ser simulada através de uma deliciosa espuma de arroz doce, plena de sabor, que assentava sobre amêndoas torradas. Um refrescante puré de manga recriava a gema, com o creme amarelo a estar aprisionado numa cúpula de gelatina que ao romper deslizava numa alusão à imagem da "gema crua". O "crumble de banana" (5,80 euros) era um flan do fruto com a mistura crocante de pão e amendoim, acompanhado por gelado de caramelo, um risco de doce de leite e pedacinhos de banana caramelizada - tudo em exuberante harmonia.
 
Não sei se a ideia inicial era ter um talho com restaurante ou o contrário, como no dilema do ovo e da galinha, mas o facto é que um complementa o outro, garantindo a qualidade do que por aqui é servido. Devia haver mais seguidores deste O Talho na atenção que dispensa às carnes, desde o corte à maturação. Há um caminho a percorrer nesta área e não é a legislação que o impede, mas sim a falta de massa crítica. Uma vez que a outra "massa" também é escassa por estes dias, talvez um esforço de contenção nos preços ajudasse a prolongar o sucesso inicial da casa, que bem o merece. Desconstruindo o lema da casa, "quem parte uma carne e a resguarda com arte, ou é tolo ou vive um prazer à parte".
Nome
O Talho
Local
Lisboa, São Sebastião da Pedreira, Rua Carlos Testa, 1
Telefone
213154105
Horarios
Segunda-feira, Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado das 12:00 às 15:00 e das 19:30 às 00:00
Website
http://www.otalho.pt
Preço
35€
Cozinha
Internacional
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