Em São Miguel, Açores, um Cantinho do Cais com uma cozinha de mar genuína que deve ser experimentada sem reservas.
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Nos Açores o mar é tudo. Foi das suas entranhas eruptivas que nasceram os miradouros divinos a que chamamos arquipélago. Distendidos sobre a infinidade do Atlântico quase parecem pedrinhas no meio de um riacho quando as vemos num mapa. Estas "pedras" permitem acrescentar uma dimensão mais atlântica à nossa cozinha. São nove e muito diferentes entre si, mas complementam-se para que possamos descobrir e absorver algumas das imagens mais belas que existem à face da Terra.
Ao mesmo tempo, estamos a pousar os pés sobre um manancial de riquezas quase inexploradas, onde os diferentes solos de cada ilha são minas de ouro em potencial agrícola e gastronómico. A conjugação terrestre com a brisa marítima que é soprada nas suas múltiplas vertentes dá-lhes a personalidade única que as distingue. A palavra terroir podia ter sido inspirada por este territorium.
É por isso que, ao andar pelas ilhas - neste caso a de S. Miguel -, há a esperança natural de que esta identidade própria se reflicta à mesa e nos coloque no prato um pouco desse mar imenso. Foi isso que nos levou ao Cantinho do Cais, em São Brás, na costa norte da ilha. Em tempos o nome casava bem com a localização junto à doca do Porto Formoso, mas entretanto mudou-se para uma zona sobranceira, junto do cruzamento que dá acesso à localidade e à praia. Está distante das águas, de costas voltadas até, mas isso não o impede de continuar a ter o mar a encher-lhe a alma e a inspirar a carta.
A ementa é curta e simples em propostas. Extra peixe há o típico bife à regional e carne de porco em bifana, lombinho, ou "assaduras", preparação que consiste em fritar a mistura de carnes para fazer chouriços que é previamente temperada numa espécie de vinha-d"alhos com pimenta da terra. Do regaço marítimo chegam diariamente diversos peixes destinados à grelha e pratos mais elaborados, além, claro, de filetes de abrótea - cada vez mais populares na restauração local. No dia visitado havia lírio, boca negra, abrótea, alfonsim, cântaro, imperador e cherne.
A casa é de construção térrea com uma pequena esplanada abrigada por baixo de um alpendre. Entra-se para a zona do café e à direita surge a porta que dá acesso à sala de refeições. Espaço muito simples sem adornos ou rasgos decorativos. Paredes revestidas de azulejos a meia altura, um armário louceiro em fundo, mesas e cadeiras e parece ser o quanto basta para a função. A lista de vinhos segue também pela métrica da singeleza - é portanto sem surpresa que se verifica a ênfase dada aos rótulos regionais que são complementados por opções dispersas entre Alentejo, Douro e alguns verdes, tudo sem datas de colheita. Não é igualmente motivo de espanto a frugalidade dos copos, que, a pedido, podem ser trocados por uns mais "jeitosos", não mais que isso.
Dada a simplicidade que rodeia este Cantinho do Cais, a expectativa da visita acabou por ficar mais centrada no capítulo das comidas, em particular nas especialidades que têm vindo a dar nome à casa. A primeira a ser experimentada foi a sopa de peixe (2 euros), que levava pedacinhos de tomate, cenoura ralada, salsa picada e um toque discreto de pimenta da terra. A dar corpo à receita vinham lascas de abrótea e massa de estrelinhas a fazer lembrar uma canja, com a particularidade do caldo, muitíssimo saboroso e límpido, parecer-se quase com um fumet de peixe clarificado feito a rigor. Esta sopa revelou-se uma bela surpresa em todos os sentidos. Preço muito cativante, boa técnica de execução e excelente sabor.
Nas entradas, não se foi além da "cesta de pão" (1 euro), com fatias de um dos gulosos pães tradicionais da ilha, cozidos em forno a lenha, de massa fofa, alta e ligeiramente húmida, pois havia vários pratos a experimentar. No entanto, reparei na particularidade de a lista referir lapas grelhadas (da Madeira) - a indicação da origem não é despicienda, uma vez que as lapas açorianas (de valor mais elevado) têm um tamanho médio menor, a textura é mais delicada (as madeirenses são mais rijas) e evidenciam um intenso sabor a mar por comparação com as congéneres do outro arquipélago.
Seguimos o proveito da faina ao pedir a "albacora" (10 euros), que era a sugestão do dia. Chegou então uma vistosa aba deste tunídeo que apanhava a zona do vão abaixo da guelra, a barriga e um pouco do lombo. Uma peça grelhada de cronómetro na mão, a soltar-se em camadas sumarentas, bem temperada com azeite e alho, e acompanhada com "recheio" (migas regionais à base de pão envolvido em refogado, tomate e pimenta da terra, que vai depois ao forno a secar), algumas pétalas de uma muito boa cebola de curtume (curtida em vinho de cheiro, vinagre e sal) de acidez equilibrada e um dispensável "jardim" (!) composto por milho de lata, cenoura ralada e alface ripada.
Chegou depois o ex-líbris da casa, de seu nome "molho de peixe" (10 euros, 20 euros/2pax, 30 euros/3pax, e 8,50/pax euros a partir de 4 pessoas), um estufado muito suave com pimento, tomate e batata sobre os quais vão suar três tipos de peixes que variam diariamente. O que nos calhou trazia encharéu, boca negra e abrótea, todos em pontos perfeitos de humidade e com o sabor genuíno das coisas simples, mas de grande qualidade. Além de aromatizarem o conjunto, umas folhinhas de hortelã traziam frescura a esta belíssima caldeirada escondida sob o enganador título de "molho". A valorizar a experiência gustativa, observou-se a delicadeza com que Pedro, o jovem filho do proprietário, serviu cada porção a partir do tacho de forma meticulosa e desembaraçando o peixe de espinhas com a ajuda de uma concha. Um gosto de ver.
O "polvo guisado" (8,50 euros) foi o parente pobre deste desfile marinho. Não fosse a categoria do espécime e dificilmente se teria percebido a sua qualidade no meio de uma confecção em que a identidade regional foi levada in extremis (quiçá ao gosto local, mas de certo violento para forasteiros). O puxado forte do refogado inicial foi afogado em "vinho de cheiro", pimenta da terra e sal a rodos, num guisado que não "puxava à pinga", pedia antes um fontanário ali à mão. A rever as proporções, de todo.
O epílogo ficou reservado para o ícone da região. O "bife de novilho à regional" (15 euros) era um medalhão alto e generoso de boa qualidade, cortado da cabeça do lombo, frito quanto baste para a carne se manter sumarenta, com a esperada companhia de alhos encamisados e de tiras de pimenta da terra, pouco queimosa e bem curtida. A assessoria era pífia, com batata frita congelada, e a mesma "zona ajardinada" do atum (milho, cenoura, alface) a acrescentar pouco mais do que cor - trocar-se-ia tudo de bom grado por batata frita fresca, que as há de boa qualidade produzidas na ilha.
Com o café experimentaram-se as agradáveis "queijadas da casa" (0,80 euros) que não eram as típicas de leite, apresentavam antes uma massa húmida e "favada" no interior a denotar sabor a laranja. Não há lista de sobremesas, diga-se.
Num registo marcadamente humilde e sem grandes alaridos, este Cantinho do Cais lá vai trilhando o seu caminho com uma cozinha honesta e identidade regional. Está longe de ser um lugar perfeito, mas o que aqui se experimenta tem o mérito de ser simples e bem feito. Nos antípodas de locais presunçosos que se encontram em São Miguel, como um de nome grafado em espanhol a ostentar o subtítulo de "cozinha regional açoriana" em que a especialidade é paella (!)... Ou outro nas imediações, de pinta in, que propõe uma aberrante "chanfana de peixe". Ora, a chanfana é um prato típico feito com carne de cabra estufada em vinho tinto; no caso desta "chanfana de peixe", é ainda acrescentada uma descrição surreal que omite o peixe nos ingredientes, referindo apenas mariscos (!) ... Costuma dizer-se que "o mar deita fora o que não presta" - pois estes tristes exemplos já lá estão "às portas" em Ponta Delgada, lamenta-se é que continuem a deformar turistas incautos e residentes deslumbrados.
"Para ser grande sê inteiro", escreveu Fernando Pessoa sob o heterónimo Ricardo Reis. Por analogia, a gastronomia dos Açores tem de assumir inteiramente a sua identidade para poder ser uma grande, senão a maior, surpresa da gastronomia portuguesa. O poeta deixou escrito um conjunto de fragmentos de uma obra inacabada a que chamou Livro do Desassossego. Nestas ilhas de bruma há produtos e lugares que são como fragmentos que nos podiam levar a um tesouro, mas para que esse mapa se vá completando tem de haver o desassossego daqueles que, mesmo longe do cais, têm o mar no horizonte.
Nome
Cantinho do Cais
Local
Ribeira Grande, Maia, Estrada Regional de São Brás
Telefone
296442631
Horarios
Todos os dias das 12:00 às 14:00 e das 19:00 às 22:00