Fugas - restaurantes e bares

  • Nuno Ferreira Santos
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A “pasta” que aqui se gasta — mas com gosto!

Por Fortunato da Câmara ,

À partida está tudo ao contrário. Tem pouco de acessível e menos ainda de local modesto para se denominar Casa de Pasto. O melhor é que no fim do repasto o prazer supera cada cêntimo gasto! É uma das boas novidades do ano em Lisboa.

Diga-se desde já que chamar-lhe Casa de Pasto é baptismo eufemístico para este restaurante de conceito bem imaginado, ambicioso e eficaz a colocar-se entre as moradas mais populares do momento em Lisboa. Quem se basear só no nome vai ter a “surpresa” de descobrir meio escondido num primeiro andar um local com preços bem acima de abordáveis e um ambiente nada simplório, em contraste com o que a designação poderia indicar. Está desde Dezembro a trazer renovadas forças à área do Corpo Santo, ironicamente em artérias onde durante décadas a carne fraquejou. Fica na porta 20 da Rua de São Paulo, junto ao arco formado pela sobranceira Rua do Alecrim.

Em boa hora esta zona do Cais do Sodré viu a má fama de outros tempos ser engolida pela ascensão do turismo cool. Aqui e noutras partes de Lisboa, o kitsch virou negócio rentável, com a profusão de nouvelles tascas, tabernas ou adegas a terem o objectivo de entreter e facturar bem à frente do prazer de comer. Policopiam-se entre si num estilo retrochique ad nauseum para terem o álibi que lhes justifique depositar pratos directamente sobre o tampo de mesas bambas, servir bebidas em frascos de compota (!) e fazer aguentar os clientes sentados num banquinho de pau ou em cadeiras desconfortáveis — mas sob a promessa implícita de se estar a ser um urbano cool. Tudo bem comportado e a curtir a “onda”, pois nestes spots só os preços é que são bárbaros. 

Por outro lado, é bom saber que, apesar de não serem muitos, também há locais que nivelam por outra bitola, como esta Casa de Pasto, que oferece uma lista grande e rica em opções. A ementa mistura bem alguns pratos que apelam à tradição com outros onde se sente um toque mais personalizado trazido pelo chef consultor Diogo Noronha, vindo do recém-desaparecido restaurante Pedro e o Lobo. Para não sermos exaustivos, destaquem-se alguns exemplos nas várias categorias em que o menu se divide. 

Nos “Acepipes”: croquete de camarão; pastel de bacalhau; empada de pato. “Pitéus e iguarias”: salada russa e ovas fritas; conchas na brasa, ervas e azedas; torrada de polvo com tomate e alho assado; pezinhos de porco em escabeche. “Peixes”: filetes de peixe-espada preto assado, salsa verde e salsa frita; veja [peixe] dos Açores, favas, espinafres e pancetta ibérica; jaquinzinhos marinados e fritos. “Carnes”: jarrete de vitela meloso, cantarelos [cogumelos] em pickles e ervilhas (2 pessoas); bochechas de porco preto, feijão verde, cebola nova e citrinos. Do “Braseiro”: costeletão de vitela maronesa; franguinhos. Guarnições: legumes de Primavera na brasa; cebolas pérola “glaceadas”; tupinambor [tubérculo] gratinado; arroz de ervilhas. Isto é apenas parte da lista!

Ainda antes das escolhas que haveriam de compor o estômago, já a decoração nos enchia os olhos com a panóplia de peças em loiça de cariz popular, distribuídas pelas paredes e prateleiras da sala principal. Duas salinhas com diversos tipos de mesa (algumas muito pequenas), papel de parede florido e umas engenhosas telas esticadas no tecto a simularem estuque decorativo, mas também a distribuírem a luz de forma indirecta. Um minicorredor para fumadores onde há uma “minifila” de três cadeiras de um antigo cinema, ou um dos empregados a estampar os menus in situ numa velha prensa de tinta a valer de imediato a foto da praxe para “postar”, são “detalhes” com a minúcia de fazerem da visita uma experiência para recordar. 

O espaço é funcional (finalmente um “retrochique” com pés e cabeça!), com um carisma inegável e contagiante, mas por vezes a obsessão de querer surpreender cai no absurdo, como é o caso da casa de banho. Além de se andar às apalpadelas no lusco-fusco dado por ténues painéis luminosos de cenouras e rabanetes, convém não fazer muito barulho para não incomodar a vizinhança do outro lado do curto painel de pano (ao nível dos joelhos) que separa os compartimentos feminino e masculino. Espera-se que Mick Jagger e Ana Moura, quando estiveram no restaurante há poucos meses, não tenham ido juntos aos lavabos. É que a tal fronteira de pano faz uma pífia tentativa de barreira sonora ao emanar sons da selva quase guturais, facilmente confundíveis com outros… Haverá melhor forma de cimentar a boa amizade entre a fadista e o vocalista dos Rolling Stones do que uma boa… refeição numa mesa portuguesa?

Também nos parece que não, por isso foi bom ver chegar à mesa alguns acepipes como os maravilhosos “rissóis de berbigão” (2 euros/cada) a darem outro estatuto a este pouco valorizado bivalve. Uma algarvia “cenoura em conserva” (1 euro) com o toque dos cominhos a dar réplica à doçura do legume, fazendo desta entrada uma simples e agradável combinação. Servidos à fatia vieram os “pezinhos de porco em escabeche” (3,50 euros), como se fossem um misto de terrina e cabeça de xara, deliciosos e bem temperados, onde sobressaía a pimenta rosa. Das “potagens” vieram as “migas de ostras” (6 euros), uma falsa promessa pelo lado conceptual, pois não havia nada de migas nesta espécie de canja de ostras com croutons, mas estava lá todo o sabor a mar no caldo do excelso bivalve, com hastes de salicórnia. No “creme de ervilhas, ovo escalfado e papada” (5 euros) saiu gorada a expectativa cremosa anunciada, surgindo uma “água” deslaçada do legume triturado. A falha foi compensada pelo sabor intenso das ervilhas frescas e a gulosa tira de gordura do porco, que parecia uma pele translúcida a proteger o ovo com a sua gema aveludada. 

Do “braseiro” veio um soberbo “atum-patudo dos Açores” (16 euros) só lacado em redor para não beliscar a sua essência, na companhia de um belo “esparregado” (2,50 euros) sem nada a apontar. O mesmo não aconteceu com o “xerém de lingueirão” (10 euros), onde sobressaiu o sabor e a depuração sem mácula do bivalve cortado em troços fartos, que enriqueciam o xerém. Este sim a desapontar: surgiu esbranquiçado e com uma textura em creme, oposto ao tom amarelado de aparência granulosa que é expectável nesta papa rústica de milho grosseiramente moído típica do barrocal algarvio. O complemento de salicórnia, hastes de coentros e folhas frescas de lima keffir trouxeram bons contrastes ao prato. 

Das carnes tinha-se experimentado na carta da Primavera o “arroz de pato” (9 euros) muito saboroso, com a carne desfiada em abundância, e regado com azeite de chouriço, a dar-lhe um sabor guloso extra. E também o “pivete estufado” (11 euros), nome popular do rabo de boi, aqui desfiado e envolto num molho denso e escuro de sabor exuberante, feito a partir de vinho tinto, na companhia de uns crocantes legumes “glaceados” (escaldados e salteados em manteiga ou azeite) que eram nabo, cenoura bebé com rama e folhas de couve pak choi. Da lista fixa vieram as “costeletas de borrego na frigideira” (12 euros), que eram quatro bandeirolas de boa carne, bem douradas por fora, mas duas delas cruas no interior a serem devolvidas para corrigir a falha. Como o prato não trazia guarnição (a ter em atenção, pois há vários sem acompanhamento), pediram-se as “alcachofras com mousseline de tomilho-limão” (4 euros), frescas e cozidas a preceito (para se poderem trincar). Vieram dois fundos médios da planta, cobertos pelo molho base feito com a infusão da erva aromática, envolvido pela delicadeza da nata batida e que foi a gratinar para revestir de luxúria, suave acidez e sabor a alcachofra, que ficou assim bem valorizada.

Na doçaria experimentou-se o “pudim Abade de Priscos” (5 euros) em dois dias distintos (e distantes), mas ambos apresentavam uma cozedura deficiente, com as fatias a racharem, e com o sabor “invisível” da gordura de presunto que a receita contempla a estar quase oculto no carácter que era suposto conferir-lhe. Já o caso do “cheesecake de tomate” (5 euros) foi uma excelente surpresa, com a versão clássica inglesa de forno muito bem executada, húmida, cremosa e com personalidade, a trazer no topo uma rústica colherada de doce de tomate com lascas do fruto visíveis na bela compota. Sublime também a “tarte de morango e ruibarbo” (5,50 euros), com a base de massa areada a ser recheada pelo virtuoso estufado do fruto vermelho com os talos deste peculiar legume da família das acelgas (nos EUA o ruibarbo é classificado como um fruto). No topo desta magnífica geleia uma inteligente cobertura de massa crumble, a enaltecer ainda mais a qualidade do recheio. 

A lista de vinhos podia ser mais ambiciosa, assim como os copos, para um cardápio tão vasto e competente. Ficam as outras qualidades e competências para endereçar ao serviço atento, eficiente e amável. A aposta neste restaurante de grande nível dissimulado de Casa de Pasto fica ganha pelo facto de reunir os ingredientes necessários para surpreender — não dispensando a correcção de alguns deslizes. Fica-se convencido que, apesar de ter um nome modesto, cada euro gasto é retribuído com pratos plenos de sabor, num ambiente agradável e descontraído, onde só preço poderá ser um pouco indigesto...

Nome
Casa de Pasto
Local
Lisboa, São Paulo, Rua de São Paulo, 20 - 1º
Telefone
963739979
Horarios
Segunda a Sábado das 12:30 às 15:00 e das 19:00 às 23:00
Website
http://www.casadepasto.com/
Preço
30€
Cozinha
Portuguesa
Observações
Com zona de estar para fumadores.
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