Depois de ter recuperado a estrela Michelin no Feitoria, arrisca agora o nome feito num restaurante fora de um hotel. O Chefe Cordeiro tem uma cozinha terra a terra de valor, mas quer ganhar o céu e voltar a ter a estrela ao peito.
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Aos poucos, a praça mais emblemática da capital vai dando passos para se poder assumir mais como local de comércio e menos como de terreiro de acesso aos paços do poder. No final do Verão, abriu o restaurante Chefe Cordeiro na ala junto ao Pátio da Galé. O reputado cozinheiro José Cordeiro assumiu o espaço em nome próprio, dando o seu apelido à casa e ao mesmo tempo abraçando a causa de ter uma ementa baseada em pratos tradicionais. A maior proximidade aos gostos comuns, a variedade da oferta e um horário alargado são as armas naturais para se bater com a restante concorrência da praça e manter o local sempre disponível para quem passa - sendo esta talvez uma premissa da concessão para dar vida à zona.
A esplanada é grande e convidativa à fruição de dois bens preciosos. Ter o tempo que nunca se perde ao ganhar uma vista grandiosa como é a do Terreiro do Paço e estar bom tempo para que esse prazer deslize até ao rio onde as águas diluem o sol sublime de Lisboa. Em se conseguindo o primeiro, o clima ameno que é cartão-de-visita da cidade encarrega-se do segundo. A sala interior não é menos convidativa. Há uma área inicial onde a cozinha serve de pano de fundo com uma aparência prática, pensada para os almoços e petiscos ao longo do dia. Ao lado fica a sala principal com chão em quadrícula a preto e branco, cadeiras confortáveis conjugadas com sofás de parede, bom aparelhamento das mesas e um pé-direito vistoso, com o tecto a ser rematado por abóbadas em tijolo, tão característico destes edifícios.
Num jantar de semana foi pena ver a sala praticamente vazia, apenas com dois casais de turistas estrangeiros, e uma recatada mesa redonda onde um ex-craque de futebol e respectiva família convivia com o próprio chef Cordeiro. A lista chegou, ou melhor, um conjunto de três folhas agrafadas de forma pouco prática (no topo), pois as páginas enfolavam quando eram viradas e algumas tinham manchas no papel. Como dizia o outro, “não havia necessidade...”, ainda para mais no serviço de jantares. O facto é que um deslize destes deveria ser perfeitamente evitável, sobretudo quando se tem o nome pendurado na fachada da casa.
A oferta geral é diversificada e ora remete para as origens transmontanas de José Cordeiro ou para a cozinha tradicional portuguesa, mas também deixa margem para algumas incursões além-fronteiras para que nenhum potencial cliente fique de fora do radar gastronómico. Nas entradas, pode encontrar-se por exemplo uma salada de polvo com molho verde, uns ovos mexidos com azedo transmontano e espargos, um escabeche do dia (peixe, coelho, etc.), moelas estufadas com tomate, “chichos” de vitela DOP, cenouras à algarvia, ou ovos “rotos”. Nos principais, há uma secção denominada “Tributo à cidade de Lisboa” onde constam, entre outros, as amêijoas à Bulhão Pato, o bife da vazia à Marrare, o bife da vazia à Portuguesa, e um inusitado bife da vazia à café Nespresso (?). O chefe lá terá os seus motivos para prestar “tributo” (ou contributo) a uma marca de café multinacional, meter a cidade nisto é que já me transcende. Nos pratos de peixe, há arroz malandro de lavagante (duas pessoas), risoto de açafrão e lima com raia em manteiga noisette ou em alternativa com vieiras, enquanto nas carnes encontra-se, por exemplo, pernil de porco fumado à transmontana, posta de vitela à mirandesa com batatas a murro e grelos salteados ou sob encomenda um arroz de cabidela caseiro (quatro pessoas).
Boa carta de vinhos, com ampla variedade de regiões e preços para que se possa encontrar a opção adequada ao prato ou à bolsa de cada cliente. Algumas referências de topo e outras sugestões menos óbvias mas igualmente válidas. Temperaturas correctas e copos de primeira a não destoarem da qualidade geral do faqueiro, guardanapos e utensílios afins. O serviço foi cordial e cumpriu os requisitos, embora por vezes parecesse inseguro, ao ter a necessidade de confirmar e reconfirmar se estava tudo bem, quiçá pelo pouco movimento de mesas. Ainda assim, ficou a sensação de faltar alguma coordenação de sala para afinar detalhes, como a apresentação das ementas.
Quem não arrisca...
Do “couvert” (2,40 euros/pessoa) fazia parte um cestinho de renda com três tipos de pão (trigo, mistura e integral com sementes) de razoável qualidade, para molhar num azeite virgem extra alentejano muito bom, e em que a garrafa foi deixada na mesa à disposição, na companhia de umas boas azeitonas marinadas e de um paté de atum. Para confortar o estômago veio um “creme de legumes bio” (2,90 euros), bem aveludado, de sabores limpos e frescura de ingredientes presente. Um dos destaques da lista vai para os salgados, com os “pastéis de bacalhau, com bacalhau” (1,90 euros/unid.) a chegarem quentinhos e a cumprirem a promessa de saberem mesmo ao dito. Um pouco mais de salsa na mistura e uma fritura mais crocante são detalhes que lhes podiam ter aumentado os pergaminhos. Na mesma senda pleonasticamente justificada vieram uns “rissóis de camarão, com camarão” (2,60 euros/unid.) de grande categoria, com o recheio de sabor intenso a marisco e rico em camarão - nota dez. O produto no seu esplendor foi a “orelheira de porco” (4,50 euros) com a carne inicialmente fumada a ser cozida a preceito e depois trinchada, a deixar exalar os aromas do fumeiro juntamente com outros pedacinhos de carne além da cartilagem porcina.
A sequência de pratos principais iniciou muito bem com a “açorda de camarão, alho e coentros” (16,50 euros) feita a partir de um caldo de mariscos competente e a rescender a mar com um numeroso séquito de camarões de boa bitola, rijinhos e carnudos, imersos na açorda cremosa e aromática. Escolhido da lista de “tributos”, o “bacalhau à Lisbonense” (14 euros) apresentava algumas esperadas parecenças ao clássico bacalhau à Brás, diferindo no corte da batata, que aqui era a delicada “cabelo de anjo”, e a particularidade de os ovos que envolviam o conjunto estarem propositadamente mal mexidos, apresentando fiapos das claras. O resultado foi um prato delicioso e de grande leveza com um sabor profundo a bacalhau, em que os frágeis novelos de batata frita contribuíram com volume e alguma estética para o empratamento. O “cachaço de vitela maronesa com cuscos transmontanos” (15,90 euros) revelou uma confecção lenta da carne, que se apresentou em dois nacos rectangulares a desfiarem sem esforço e de sabor impressivo, embora na zona central da peça faltasse um pouco de suculência. Os “cuscos”, um preparado de subsistência com raízes árabes seculares que também pode ser usado em sobremesas, cumpriam aqui a função de acompanhamento num guisadinho robusto e guloso guarnecido com pedacinhos de chouriço e pareceu-me que um pouco do molho da carne.
As doses generosas servidas em tachinhos de ferro fundido não deram espaço para mais que duas sobremesas. Um “arroz doce com gelado de canela” (4,50 euros) com a ideia do gelado de canela a ser interessante, mas com o arroz a estar um pouco líquido de mais e de sabor aguado. Portentosa era a “mousse de chocolate gelada com pinhões tostados e Vinho do Porto” (6,50 euros), servida numa caneca com os frutos secos ligeiramente caramelizados no topo, lado a lado com uma espuma do vinho, e à parte uma bola de gelado de framboesa que ia refrescando o palato para contrastar com o óptimo chocolate negro.
O adágio popular “quem não arrisca não petisca” parece servir de azimute à restauração actual. A interpretação tem sido literal, pois muitos dos que têm decidido correr riscos quase sempre encharcam as listas de petiscos. José Cordeiro não foge à regra e arriscou em nome próprio entrar na discussão de sobreviver à crise e ganhar o seu lugar. O prometido restaurante gastronómico está agora aprazado para antes da Primavera na zona do mezanino deste novo espaço. Vamos ver se esta “saída a terreiro” do reputado chef Cordeiro lhe permitirá revalidar a estrela Michelin deixada no Feitoria conjugando cozinha de autor e tradicional em pleno Terreiro do Paço.
Nome
Chefe Cordeiro
Local
Lisboa, Madalena, Praça do Comércio, 20/23
Telefone
216080090
Horarios
Domingo, Segunda-feira, Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado das 09:00 às 00:30