Fugas - restaurantes e bares

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Um “Antrios” de bem comer e beber

Por Fortunato da Câmara ,

Na casa da família Pintor, em Loures, pratica-se uma cozinha de sabores memoráveis, simples e genuína, com a mesma clareza de um quadro branco de Antrios. Nos vinhos a oferta é tão surreal quão abstracta pode ser a arte... de bem servir!

Há uns bons quinze anos esteve em cena a peça de teatro Arte de Yasmina Reza, com uma encenação e interpretação memoráveis de António Feio, juntamente com os actores Miguel Guilherme e José Pedro Gomes. A peça era sobre três amigos e o facto de um deles ter gasto uma boa maquia num “quadro branco, com riscas brancas”, um Antrios... Os outros ficaram preocupados, quase ofendidos com a audácia de tão estranha compra. Não compreendiam qual o motivo de interesse que um “quadro branco” lhe tinha despertado. 

A estranheza pode ser um dos sentimentos que assalta quem chega pela primeira vez ao Solar dos Pintor. O restaurante está perdido numa aldeia dos arredores de Loures e a ideia de propor uma deslocação com fins gastronómicos à Manjoeira pode soar a chiste para alguns. A desconfiança começará logo a dissipar-se à medida que se forem saboreando os “pastéis de bacalhau” (0,50 euros) de fritura impecável, crocante, interior leve e fofo (provavelmente pela incorporação de claras) e com o bacalhau a ter ascendente (e bem) na proporção com a batata. Por vezes são servidos acabados de fritar - o ideal seria ser esta a regra - ficando ainda mais gulosos.

Antes de chegarmos à mesa, refira-se que a designação “solar” é uma hipérbole para a moradia de linhas singelas onde a família Pintor tem o restaurante instalado no piso térreo da sua habitação. O espaço está na família há três gerações. Começou no tempo dos avós de Luís Filipe Pintor, inicialmente como adega, depois taberna e agora, e nas últimas décadas, em versão restaurante, onde a sua esposa Áurea oficia na cozinha. A decoração interior é frugal, com uma zona de café logo à entrada, e ao cimo de umas escadinhas uma sala sobrelevada de mesas espaçosas e bancos corridos, onde uma imagem que remete para a pintura Os bêbados de Malhoa (datada de 1907) é o principal elemento decorativo.

A ementa é de cariz tradicional, com alguns pratos fixos durante a semana aos almoços, complementada por outras especialidades onde a carne tem maior incidência que o peixe. No entanto, podem encontrar-se uns linguadinhos fritos com arroz de feijão ou gadus morhua com grão-de-bico, uma forma irónica de anunciar que por aqui se serve bacalhau do legítimo, quando há por aí tantos escamudos e badejos secos, travestidos de fiéis amigos, mas da onça. A cozinha dá também destaque a diversas preparações de tacho e forno, como por exemplo o arroz de coelho malandrinho, o frango de caril ou as barrigas de porco assadas.

Escolhidos os pratos principais, o próximo passo é ir até à garrafeira, uma sala separada que se pode reservar para pequenos grupos de enófilos que queiram estar no aconchego da respeitável oferta vínica que preenche as paredes. Um desses apaixonados é o próprio Luís Pintor, que pode não ter aqui uma colecção de Mirós, mas ao darmos uma breve mirada dá para vislumbrar preciosidades na cuidada selecção de vinhos de topo de diversas regiões, e alguns exemplares dos gloriosos anos de 2007 e 2008 provenientes do Douro, por exemplo. Designações do tipo “vinhas velhas”, “garrafeira” ou “reserva” de produtores pouco frequentes de se encontrarem, a preços abaixo dos 10 euros, surpreendem tanto como ver rótulos de prestígio por valores bem comedidos em relação à sua suposta cotação de mercado. Descontando o facto de grande parte das garrafas estarem de pé nas prateleiras (nada recomendável no caso dos mais longevos, onde a única vantagem é estarem disponíveis para serem consumidos de imediato), mas juntando a existência de copos próprios para vinho, e temperaturas correctas de serviço, estamos perante um cenário quase abstracto no mundo da restauração, onde em geral o que figura é um quadro negro de especulação de preços que poucas vezes se justifica. 

 

No ponto de sal

Na mesa já temos “pão, azeitonas e paté” (2,25 euros). No caso da pasta (de atum) para barrar não há grande história, ao contrário do pão de boa qualidade e da “veracidade” das azeitonas, que, apesar de não serem oxidadas, tinham um sabor discreto. A título de intróito, vieram uns “ovos com cogumelos” (4 euros) numa dose avantajada que se trocava de bom grado por metade da porção se os cogumelos fossem frescos em vez dos “des(en)graçados” de lata. No prato de “enchidos mistos” (4 euros), vinham chouriço, farinheira e morcela, todos de boa qualidade, e um molhinho de grelos que fazia o necessário contraponto ligeiramente acre face às variações de sabor das carnes. Petiscou-se ainda um pouco de “chanfana de vitela” (6 euros), cuja designação inusitada não se justifica só pelo facto de ser cozinhada lentamente numa marinada à base de vinho tinto. O que fica é o rigor da confecção, com a carne a desfiar quanto baste numa textura excelente, e o apuro do delicioso molho. 

Outra preparação de tacho muito bem conseguida foi o “coelho à caçador” (6 euros), com a carne a embeber o aromático caldo da confecção, mas sem deixar desvanecer o seu sabor característico. A “carne de porco à saloia” (6 euros) vinha cortada aos cubos, temperada com massa de pimentão e frita em azeite com um pouco de vinho branco, mas a ficar húmida no interior e sem excessos de gordura. 

Noutra refeição, o ponto de partida foi dado pela “sopa de feijão e lombardo” (1,50 euros), com a leguminosa a ser de demolha a partir de seca (o que faz logo a diferença), e a couve a ser cozinhada com critério a ponto de se poder trincar e sentir a frescura dos talos. Um início reconfortante que quase valeu a viagem, e me fez viajar as memórias gustativas de uma sopa da avó. Chegou depois o “peixe-espada frito com arroz de tomate” (6 euros), em três postas gordas, fresquíssimas e fritas na perfeição a manterem os sucos interiores. O arroz sabia a comidinha de casa, apresentando-se sequinho na medida certa e com umas tirinhas de pimento para alegrar, mas sem ofuscar o tomate. Na “cabidela de galinha” (6 euros) fugiu a mão para o vinagre, o que deixou o arroz carolino de bago longo um pouco líquido e desequilibrado em relação ao sangue. Em contrapartida, a ave do campo estava saborosa e com a rigidez que lhe é característica. 

Nos doces, a tónica dos preços módicos mantém-se em execuções correctas como o “arroz doce” (1, 75 euros), de sabor agradável embora discreto, um pouco líquido, e a trazer canela em excesso. A “mousse de chocolate” (1,75 euros) ganhou em densidade e textura quando ficou menos gelada do que a temperatura a que foi servida. Um perfil caseiro tinha o “pudim de ovos” (1,75 euros) de onde foi servida numa vistosa fatia de consistência ligeiramente enqueijada. O destaque maior foi para os “manjoeiros” (0,60 euros), umas gulosas queijadas de leite, húmidas e com um toque alimonado, que vêm a acompanhar o café, e muito bem.

Relevo também para a simpatia e disponibilidade do serviço, que decorreu num registo quase familiar. Uma característica que sobressai na forma de cozinhar de Áurea Pintor é a parcimónia no uso do sal. Um dado importante numa casa com tantas “guloseimas” vínicas em que a tentação de forçar a tecla salina podia ser grande. O sabor apurado das confecções foi dado pelo tempero geral e não pelo abuso do sal, uma espécie de dom que deixaria qualquer cardiologista a ajeitar o laçarote de satisfação. 

No ficcionado Antrios que Yasmina Reza imaginou para a peça Arte, o quadro da discórdia caracteriza-se pela “clareza” das suas “linhas brancas” quase “abstractas”. Ir ao Solar dos Pintor é uma experiência igualmente dissonante e quase estranha para os tempos difíceis que se vivem. Alguns ficarão espantados por ainda existirem restaurantes assim. Uma cozinha “clara”, generosa e simples - mas não simplista -, em que não há jogo “branco” na carta de vinhos, onde os preços praticados podem ser agradavelmente “surreais”, colocando este lugar num patamar quase “abstracto” da restauração actual e que continua a resistir às “novidades” dos grandes centros urbanos, tantas vezes fabricadas para quem se deixa iludir.

Nome
Solar dos Pintor
Local
Loures, Santo Antão do Tojal, Rua José Dias Coelho, 1
Telefone
219490011
Horarios
Segunda-feira, Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira e Sexta-feira das 12:00 às 15:00 e das 19:00 às 22:00
e Sábado das 12:00 às 15:00
Website
https://www.facebook.com/solar.dospintor
Preço
15€
Cozinha
Trad. Portuguesa
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