Fugas - restaurantes e bares

  • Tiago Feio e Ana Cachaço
    Tiago Feio e Ana Cachaço Daniel Rocha
  • Restaurante Leopold
    Restaurante Leopold Daniel Rocha
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    Restaurante Leopold Daniel Rocha

“Foodielogia do gosto”, ousada e discutível

Por Fortunato da Câmara ,

O Leopold é uma loja cheia de boas intenções. Tem comida interessante, mas não é um restaurante. Persegue uma utopia, mas tropeça em entropias. Um gastrónomo exigente não sairá daqui cliente, para um iconoclasta é a experiência ousada que basta.

Em tempos, os amantes dos prazeres da mesa de forma regrada e exigente eram denominados de “conhecedores”, “apreciadores”, numa linha mais elitista os “gastrónomos” e o ultravulgarizado termo “gourmet”, que serve para adjectivar tudo, desde pessoas, a produtos ou espaços. Nos antípodas disto estavam os epítetos de “comilão”, “glutão”, ou, para usar uma sinédoque politicamente correcta, “V. Exa. é… um bom garfo”, tradução polida do pensamento interior de que tal cavalheiro era, no fundo, “um lambão”. Mais recente, embora a caminho do quarto de século de existência, surgiu a bizarra palavra foodie, de sonoridade infantil e traiçoeira.

Foi aplicada a primeira vez por Gael Greene, prestigiada crítica da New York Magazine, conhecida por ser sempre fotografada a usar uma capelina que lhe ocultava parte do rosto. No artigo “O que há de novo? A cozinha burguesa” (Junho de 1980), a célebre “senhora do chapéu” reflecte acerca do fim da nouvelle cuisine após uma viagem a Paris. A nova tendência era a cozinha burguesa, um regresso à tradição que surgia como a grande novidade do momento… para alguns. No seu tom mordaz, Gael Green referia um novo restaurante de ambiente “funerário” frequentado por “foodies de ar grave”, ávidos para serem vistos na morada em voga entre a elite parisiense. Brillat-Savarin, autor da obra-prima Fisiologia do Gosto (1825), que reflecte de forma filosófica acerca da gastronomia, hoje talvez acrescentasse às suas meditações um capítulo sobre a “foodielogia do gosto”.

Hoje, ser foodie é mais abrangente e não se resume à ida a um local “tendência” com a “missão” de ver e ser visto, mas em que a prioridade da visita é a comida. Para um foodie, a importância da comida pode sair mais reforçada se puder conhecer o chef (mais que os cozinheiros) e a sua “filosofia”, descobrir a “irreverência” da cozinha praticada, ou até cultivar o lado icónico e de endeusamento do acto de cozinhar. Tal como nos devotos de uma banda musical, há um pouco de groupie em cada foodie. Descobrir a última ousadia gastronómica da cidade, o chef mais arrojado, a proposta mais desconcertante e partilhar tudo na Net para não ficar fora do “mundinho” num instante.

Esta respeitável, ainda que por vezes obsessiva, procura pela next big thing da cozinha tem a vantagem de dar a conhecer projectos arriscados e pouco consensuais. O Leopold, instalado desde Fevereiro numa antiga padaria da Mouraria, Lisboa, e que tem apenas duas pessoas é um desses casos. O espaço, quase intocado, tem apenas quatro mesas e algum equipamento de cozinha assentado nas bancadas de pedra originais da loja. A impossibilidade de fazer a extracção de fumos “forçou” o chef Tiago Feio a cozinhar sem forno ou fogão, dando origem a pratos em que o jogo de sabores é o principal atributo para surpreender, revelando-se também um chamariz para atrair clientes. Recorrendo a um aparelho que cozinha os alimentos em sacos a vácuo imersos em água com temperatura controlada, saem pratos de cozedura precisa e sabores mais puros e intensos.

Surgiram-me dúvidas. Dos tempos em que estudei hotelaria, recordo-me de existirem depuradores electrostáticos próprios para quando não há condutas de extracção e de a legislação obrigar os restaurantes a terem extracção de fumos para exercer actividade. Por outro lado, o marketing também pode ser um “ingrediente”, a juntar aos vários e pouco usuais que se usam no Leopold.

A refeição abre com “pão e queijo fresco de cabra” (3,50 euros), um deles de Chaves e uma broa alentejana — ambos de boa qualidade — e “pão económico de Trás-os-Montes”, nome inusitado para o que na realidade é um biscoito seco pouco adocicado (bolos económicos), feito com azeite e aguardente. A guarnecer o trio, um pedaço de queijo de cabra banal, “barrado” no prato, apenas avivado de sabor por um fio de azeite e raspas de limão. Seguiu-se um “ovo cremoso com cogumelos” (5 euros), quase veludo graças à cocção a temperatura controlada, também aplicada nos cogumelos shitake, cujo sabor foi avivado no grill de um miniforno. A cobrir o ovo em redor da saborosa gema temperada com folhas de tomilho vinha trigo-sarraceno crocante (uma das vezes amargava por ter torrado de mais). Conjunto feliz, mas pouco original. Depois vieram os “legumes na terra” (8 euros), onde um creme de nabo ligeiramente amargo vinha coberto com “terra” de cacau e alfarroba. Ali “enterradas” vinham cenouras bebé ainda com rama e de textura crocante, folhas de mostarda japonesa (mizuna), e pontinhos de miso branco em gel (pasta de soja fermentada). A ligação e o contraste entre ingredientes estavam muito agradáveis, sendo o prato uma espécie de réplica da erradamente chamada “nova cozinha nórdica”. Nome vago para o conceito de cozinha que os dinamarqueses fabricaram nos últimos anos com a ajuda de subsídios estatais, e que em parte se inspira em alguns princípios da nouvelle cuisine.

Nas duas visitas efectuadas provou-se sempre a totalidade da carta. Cinco pratos na primeira vez (não havia uma das únicas duas sobremesas), e sete mais de um mês depois, num menu semelhante em que a única novidade foram as “castanhas e chouriço doce” (8 euros). Pedaços de um peculiar enchido transmontano que junta mel e amêndoa às carnes, a ligar na perfeição com um bom e delicado puré de castanhas, a ser anulado pelo sabor adstringente do leitelho, e ainda uma deslocada flor de curgete fora de época que não acrescentava nada ao prato.

O serviço executado por Ana é amável, mas um pouco desajeitado, ao ter lapsos na limpeza do tampo da mesa, ou a falhar na abertura de duas garrafas ao partir a rolha. A lista de vinhos é exígua, com menos de dez itens a preços errantes servidos em copos de marca vínica, mas com a função de servirem água. Cada garfo é disposto na mesa (não há outros talheres ou toalha), num gesto quase metódico antes de cada prato servido na bela faiança Bordallo Pinheiro ser colocado no centro, num convite implícito a que se partilhe o gamelório. É pena que não exista tanto rigor ao serem retirados os pratos da mesa para os enxaguar brevemente em água fria, como foi visto por duas vezes, para serem reutilizados quase de imediato por outros clientes. Sem comentários.

Nas sugestões aparentadas de prato principal há um “bacalhau, broa e cogumelos shitake” (10 euros), um quadradinho do dito em porção ajustada a uma entrada, menos de metade da servida na primeira visita, que custou na altura 15 euros. O bacalhau, congelado e de meia cura, exibia a sua untuosidade intersticial, mas denotava um sabor intrusivo (embora invisível) a pimenta preta, provavelmente devida à “cura” caseira que o cozinheiro referiu fazer após a demolha inicial. Na base, broa esfarelada, e ao lado folhas de agrião, um pouco de miso muito salgado e alguns pezinhos de cogumelos shitake. A parca quantidade de alguns ingredientes faz com que quase desapareçam no meio das nervuras que a textura da loiça tem, sendo sempre preciso escavar para se sentir vagamente alguns elementos, como o pó de clorofila. A “mizuna com carne dos Açores” (10 euros) era uma pequena floresta do vegetal a tapar fatias da vazia, marcadas no exterior estilo naco de atum, mas rosadas no centro da peça. Numa das vezes a trazer picles de pêra, noutra o curtimento era de cebola, ambas muito boas, suaves e delicadas, e também gel de soja e pedacinhos de manteiga de ovelha a derreter sobre as fatias carnais.

Engenho nas sobremesas

As sobremesas são simples, mas engenhosas ao nível do sabor. A de “feijão doce e maçã ácida” (5 euros) quase podia ser vista como uma equação química. Sobre uma base “neutra” de puré de feijão branco, nem doce nem salgado, vinham cravados pequenos discos “ácidos” de maçã Granny Smith (fruto que contém ácido málico) salpicados com limão, e intercalados com uns estaladiços beijinhos das Caldas da Rainha, a trazerem a doçura que é a “base” de uma sobremesa. A de “banana e queijo de São Jorge” (5 euros) era um convénio insular inspirado no prazer infantil de comer uma sandes de queijo com banana, onde um puré do fruto madeirense revelou o seu sabor intenso e inequívoco após ser salteado em manteiga, para receber a deliciosa e picante confrontação do queijo açoriano de cura superior a sete meses. Um jogo simples e eficaz entre produtos de referência dos dois arquipélagos, a terem de permeio uma “areia” feita com biscoitos de melaço e canela.

Este Leopold evidencia uma forma diferente de pensar a cozinha e mostra um trabalho desafiante na conjugação de sabores. A dedicação do casal Tiago e Ana é quase enternecedora na ideia de fazerem de diversas limitações uma experiência ousada e memorável. O lado pragmático é que essa ideia utópica se perde quando a espera entre pratos é em média de 20 minutos, arrastando a refeição durante cerca de 2h30 por porções minimalistas que aniquilam a ideia equilibrada do que é ter o “prazer da mesa”. Ao contrário do esperado, pelo facto de se cozinhar a vácuo, o aroma discreto de alguns pratos também não favoreceu a criação de uma “imagem sensorial dos sabores” que os fizesse perdurar na memória gustativa.

O Leopold tem a filosofia de um supper club onde se paga em dinheiro vivo (aqui é inevitável) por uma refeição ousada e sem grandes regras à espera de ser surpreendido. De momento, agradará muito a uma espécie de “foodielogia do gosto” de quem busca o que é exclusivo e irreverente para poder anunciar que esteve ali presente. Para os mais incautos, é provável que exista um certo acanhamento de cobaias, como foi visível num casal de clientes estrangeiros, que contrastava com um pequeno grupo que atacava o prato centrado contendo uma porção que mal satisfaria duas pessoas com a alegria de quem só vagamente provou o que veio, mas que não poupava na hora de tecer sonoras e complexas loas. O Leopold pode vir a ser o princípio de alguma coisa. Para já, o que fica mais forte na memória é a loiça.

Nome
Leopold
Local
Lisboa, Socorro, Rua de São Cristóvão, 27
Telefone
218861697
Horarios
Domingo, Quarta-feira, Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado das 19:00 às 23:00
Website
https://www.facebook.com/restaurante.leopold
Preço
30€
Cozinha
Autor
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