Fugas - restaurantes e bares

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    Maaemo Bandar Abdul-Jauwad
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    Maaemo Bandar Abdul-Jauwad
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    Maaemo DR
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    Esban Holmboe Bang Tuukka Koski

A paisagem da Noruega à mesa

Por Isabel Lucas ,

Reflecte o lugar onde se insere: cosmopolita a desafiar convenções. Um cubo de vidro experimental, na Oslo em construção, onde se ensaia sobre a natureza para a servir 100% biológica numa experiência que pode ser radical. Um menu único assinado por um chef que prefere ter o nome atrás do restaurante que idealizou: o Maeemo, de Esban Holmboe Bang como ele o conta aqui.

Jacques Tati e Ridley Scott, Play Time e Blade Runner, 1967 e um futuro imaginado em 1982 reunidos em 2014. Prédios de fachadas cinzentas, linhas rectas, ruas em quadrícula num bairro cruzado por comboios que passam num silêncio em conformidade com as mais exigentes regras ambientais; passadeiras para peões a desafiar vertigens e a fazer de cada um que as atravessa personagens de um jogo de consola. Estamos na Oslo moderna, a que contrasta com a Karl Johans Gate, a rua histórica da cidade de Ibsen onde Knut Hamsun andou como vagabundo, do Grand Café, do Teatro, da zona portuária envelhecida que a Opera House veio transformar em 2009 numa das mais modernas do Norte da Europa. Essa é a fronteira, o imenso edifício da autoria do arquitecto norueguês Tarald Lundevall, o maior espaço de artes da Noruega, que reabilitou para a capital uma zona anteriormente deserta, a indicar um futuro como a literatura e o cinema o têm idealizado na cidade com maior índice de crescimento urbanístico da Europa.

Não é nada por acaso que é nessa cidade nova que está um restaurante a desafiar convenções. Chama-se Maaemo, abriu há quatro anos, tem à frente da cozinha o chef Esben Holmboe Bang, um dinamarquês que só trabalha com 95% de produtos noruegueses, biológicos, tão selvagens quanto possível, num restaurante que, 14 meses depois de inaugurar, recebeu duas estrelas do Guia Michelin.

Não há holofotes, nenhuma placa com o nome iluminado. Apenas um cubo de vidro no cimo de um prédio que culmina numa passagem aérea para peões a atravessar a maior estação de comboio de Oslo e a palavra “Maaemo”, sinónimo de “mãe natureza” segundo os dicionários, marcada no vidro da porta. O nome foi escolhido para ser uma espécie de statement: nada do que se serve ali contraria as leis que ditam o modo de vida de um dos países mais extensos e de maiores recursos da Europa. Dúvidas sobre essa intenção do Maaemo? Deixe-se a sala de refeições, com paredes decoradas com fotografias de rostos e corpos, e cadeiras de madeira clara, nórdica, e suba-se ao “laboratório”, assim se chama o espaço que medeia a sala e o lugar onde estão os fornos, os fogões, os frigoríficos. Aí só há vidro a separar interior e exterior, vista total para o cinzento, no chão, boiões com cogumelos em conserva, raízes, o que parecem ser frutos em calda, ramos secos, uma biblioteca de manuais de cozinha e de alimentos. Modos de produzir, preservar, cultivar, um mini-atlas para consulta imediata, frases a marcador na parede de vidro com notas sobre as últimas conclusões, dúvidas, quase fórmulas para atingir o ponto óptimo de qualquer experiência.

O que será que os poucos que passam conseguem ler, do lado de fora, quando Esben escreve mais uma nota naquele quebra-cabeças para os poucos que passam? Provavelmente nada. A ideia de transparência funciona para quem está no interior e dá ao espaço a ilusão de abertura total à cidade onde os dois proprietários do Maaemo quiseram dizer com aquele restaurante que se pode ser diferente e, quem sabe, mais fiel às tradições num lugar que desafia o convencional. A conversa vai quase sempre por aí: ser 100% norueguês com regras, mais do que contemporâneas, pessoais. “Queria algo que reflectisse o que sou e onde estamos”, afirma Esben, olhando para o sócio, o sommelier finlandês Pontus Dahlström , fazendo um resumo do que têm sido quatro anos de vida a assistir, literalmente, à mudança na cidade onde escolheram viver.

O Maaemo é um projecto pessoal, dois sócios, um dinamarquês, o próprio Esban, que quiseram levar para Oslo um lugar que rompesse com a tradição francesa clássica que dominava. “Mesmo quando os espaços tinham uma identidade renovada, contemporânea, a execução reflectia essas referências”, continua. E a localização não foi o menos em toda esta génese. Quase tão arriscada quanto o projecto de servir a Noruega como ela nunca se viu. “É uma zona muito diferente, mas isso também faz parte do caminho. Não queríamos que estivesse na posh west side da cidade onde está todo o dinheiro e onde estão os restaurantes de fine dining. Queríamos algo novo, que definisse o que estamos e o que queríamos fazer. Se tivéssemos aberto por ali as pessoas teriam uma ideia do que este restaurante poderia ser que não seria fiel. Ao abrirmos aqui, todas as hipóteses são possíveis, podemos fazer o que quisermos”, justifica Esben sem menosprezar um único ponto no que é a identidade do Maaemo, até pelo lado menos exposto que tem: o de um restaurante que, apesar do trabalho que faz, continua numa espécie de exclusividade discreta.

A filosofia

Na frase que escreve a marcador azul na parede de vidro Esben lembra o que é preciso apurar na fermentação do morango silvestre. Vai servir para fazer caldas, geleias, ainda não sabe bem em que prato. Isso virá com a experimentação nas mais de 12 horas diárias que passa na cozinha com cerca de 15 pessoas, de terça a domingo. Serve-se uma viagem pela paisagem norueguesa. Pode ser vago, mas é o mote, o grande desafio: fazer uma cozinha inovadora com produtos “100% noruegueses”. “Antes de abrir passámos seis meses a percorrer o país à procura dos produtores certos. Quando os encontrávamos, a dificuldade era convencê-los a produzirem para nós. Ninguém nos conhecia. Por outro lado, havia produções muito pequenas, outras apenas particulares, que se limitavam a produzir para consumo próprio. Mas se queríamos um produto não desistíamos. Foi um longo processo para conquistar a confiança de muitos deles. Não nos conheciam, queríamos poucas quantidades, o que poderíamos oferecer?”, ironiza, com a história que se seguiu. “Quando conquistámos duas estrelas Michelin tudo mudou. Agora são eles que nos vêm bater à porta. Acham que estar aqui é estar associado ao prestígio. Isso orgulha-nos, mas somos nós quem continua a escolher com quem trabalhamos.”

E a maior parte dos produtos com que trabalham, além de serem 95% noruegueses, vêm, em grande parte, de um perímetro de 100 quilómetros da cidade de Oslo. Cada um é trabalhado com pinças, em todas as suas facetas antes de ser servido. No centro do tal laboratório de vidro, a cozinha das experiências, está um balcão de pedra que às refeições serve de mesa onde se sentam uns happy few, em cima estão agora doze taças transparentes, semelhantes às de um laboratório de pesquisa científica, perfiladas num tabuleiro e, em cada uma, um líquido rosado. Esben tira uma colher e prova o conteúdo de cada uma. Partilha a prova. “Que acha?”, pergunta, acerca daquele paladar adocicado com uma nota de acidez mais ou menos acentuada de acordo com cada prova. São doze possibilidades de como conservar morangos silvestres, preservando um sabor o mais próximo do original, num processo de fermentação que segue as regras usadas pelos antepassados de um país que durante cerca de seis meses tem de consumir o que a natureza lhe forneceu ao longo de outros seis. Só quando se atingir o ponto ideal, o processo laboratorial pára e se passa para o próximo desafio, o da confecção num menu que nunca muda por completo — “Apesar de estarmos sempre a fazer ajustes, juntar novos pratos, fazer alterações, acrescentar produtos de acordo com a época”. Em tudo há a supervisão de Esben, o nome por detrás de um dos restaurantes que oferece aos seus clientes uma das experiências gastronómicas mais surpreendentes de fine dining.

Quem se senta numa das nove mesas da sala, mais uma com vista aberta para a cozinha, tal andar de cima, completamente transparente para as luzes da cidade, não tem escolha. Os pratos e o vinho são da total responsabilidade do chef e do sommelier. À entrada, apenas uma pergunta: tem alergias? “O objectivo é oferecer uma experiência marcante, conseguir surpreender”, diz Esben Holmboe Bang, louro, alto, atlético, ainda em trajes informais. São onze da manhã e acaba de chegar da cidade onde foi avaliar a qualidade de umas folhas de pinheiro. Quando se fala de Maaemo, o nome de Esben nunca vem na mesma linha em que é colocado o restaurante. “O restaurante é o tema, não sou eu”, continua, numa conversa onde fala das duas faces da moeda que é ser chef de um restaurante reconhecido internacionalmente sem querer ser vedeta, ou uma pop-star, termo que usa para definir um estatuto recente associado a quem tem o protagonismo numa cozinha, mas que trouxe, reconhece, uma nova dinâmica à gastronomia. É disso de que se fala, quando se fala deste tipo de restaurantes dirigidos a um público que vê a comida como experiência mais do que alimento? “Eu preciso chamar-lhe cozinha. Eu sou um cozinheiro e é na cozinha que gosto mais de estar, apesar de saber que de vez em quando tenho de aparecer, ir a festivais, participar em eventos. Mas tento encontrar o equilíbrio, sempre a pensar no restaurante.”

Como se um e outro fossem separáveis. Da apresentação dos pratos à decoração do espaço, ao modo como é construída a imagem (desde o site à promoção do Maaemo), a música escolhida como fundo, tudo é reflexo dos gostos pessoais, sobretudo de Esben, um amante de cinema, música, fotografia, arquitectura. Todas essas artes se fundem no Maaemo, a imagem de uma Noruega contemporânea, cosmopolita, fora do provincianismo a que esteve associada durante séculos, incluindo na cozinha, onde os toques de sofisticação eram importados e foram, ao longo dos tempos, pouco sujeitos a revisão. “Qualquer coisa que nos estimula como seres humanos define-nos no que fazemos e, no meu caso, isso activa a minha criatividade.”

Um artista? Sorri. “Não é por aí. Tenho muito cuidado com o que faço. Quem vem aqui poderia estar a fazer qualquer coisa de muito especial na vida e escolheu sentar-se e provar o que faço”, continua, numa referência ao preço que faz deste um dos restaurantes mais caros do mundo, com um custo de refeição por pessoa que ultrapassa os 600 euros. Um norueguês pode olhar para todo este quadro, desde a proposta à imagem, passando pelo preço, como arriscado. A ambição pessoal, a exibição de “riqueza”, o que pode ser visto no limite como uma aposta pretensiosa, desafia as boas maneiras locais, baseadas numa cultura de discrição — mas o facto de cerca de metade da clientela ser norueguesa ao fim destes quatro anos, é, para Esben e para o seus sócios, reveladora de uma mudança de atitude. “Temos clientes de todo o lado, mas talvez os que têm experiências mais emocionantes com o que servimos sejam os noruegueses”, conta o chef, falando de “quase-lágrimas” à mesa sempre que é servido um prato com uma apresentação muito diferente da tradicional, mas que no momento da prova revela um sabor que convoca memórias muito antigas e pessoais. “Sei do que falo, foi a essas memórias que fui buscar muita da minha inspiração, quero esses sabores, mas trabalhados de outra forma. Quero-os o mais aproximados possível da sua essência.”

A opção pelos produtos orgânicos, pela biodinâmica, pelo respeito pelo lado selvagem é uma filosofia de vida que Esben aprendeu com o pai e com a mãe, com quem passou temporadas em comunidades na zona de Copenhaga, onde se ensinavam regras da vivência em comum. Quando quis trabalhar numa cozinha, toda essa experiência se foi revelando e foi sonhando com um lugar onde pudesse pôr em prática esse ideal de cruzar o que poucos se atreviam. Ele fala em cruzar cozinha com paisagem. E a da Noruega tem pouco de solar, “embora haja dias de sol”, brinca. “Só que são os dias escuros, húmidos, frios. Viver aqui não é fácil, não são os postais que nos vendem em guias turísticos. Mas esse lado negro traz uma identidade muito forte. Veja o que se escreve por aqui, o cinema e a música que se faz.” E aqui já passou as fronteiras da Noruega. É um modo de ser nórdico que tem ganho cada vez mais adeptos também na cozinha, a que muitos se referem como a nova cozinha nórdica. “Este novo já não faz sentido”, sublinha Esben. “Claro que há uma cozinha nórdica, identificável, como a mediterrânica, a italiana, a francesa, com paladares e produtos que a definem. Tem vindo a ser muito trabalhada, divulgada, mas falar em novo nórdico já não é válido. Há um nórdico.” Sem nomear chefs ou restaurantes, prefere falar em palato. Um paladar que a identifica e que pode ser leve e fresco, com sabores como o pinho ou o mar, como forte e complexo, com as carnes e as leveduras. “O paladar somos nós que o manipulamos a partir de uma base e é ele quem dita tudo.”

Por tudo isso, acha que faz sentido falar em exótico para definir este sentido, o do paladar. É algo extremado, único em relação a uma determinada geografia, que o torna estranho a outra. Não se fala do culto dos insectos ou larvas em algumas destas cozinhas, mas antes de outras exuberâncias: as tais da natureza e da sua conservação. Como guardar pato para o ano inteiro: com uma cura de seis meses, por exemplo, que se serve em pequenas tiras. Ou os lagostins com sabor a pinho, um dos pratos mais emblemáticos do Maaemo. “Talvez se chame paisagem a isso. Talvez seja mesmo isso que queremos servir. Paisagem com sabor, uma possibilidade que nunca termina. O caminho está encontrado. É preciso continuar a refiná-lo.”

Nome
Maaemo
Local
Estrangeiro, Noruega, Schweigaardsgt. 15b 0191, Oslo
Telefone
+47 919 94 805
Horarios
Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira e Sexta-feira das 18:00 às 01:00
Sábado das 11:00 às 15:00 e das 18:30 às 01:00
Website
http://maaemo.no/
Cozinha
Autor
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