Fugas - restaurantes e bares

  • Enric Vives-Rubio
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Na casa encantada de Gabriel só jantam quatro pessoas

Por Alexandra Prado Coelho ,

Jantar no Leão Vermelho, restaurante criado pelo brasileiro Gabriel Vidolin na casa dos avós, é entrar numa peça de teatro que só recebe quatro espectadores por noite. Percorrem-se salas com nomes de país das maravilhas, bebem-se licores, habita-se um conto de fadas.

Gabriel Vidolin queria ter no Brasil um restaurante “com o mesmo nível de qualidade e criatividade” daqueles onde se tinha formado na Europa – estamos a falar, por exemplo, dos espanhóis elBulli (entretanto encerrado, mas que foi várias vezes considerado o melhor do mundo) ou Mugaritz, que ocupa o 6º lugar na lista do World’s 50 Best Restaurants. E Gabriel queria abrir o seu projecto não no Rio de Janeiro ou noutra grande metrópole mas na sua cidade natal, São João da Boa Vista, a 200 quilómetros de São Paulo.

Impossível? Bom, Gabriel conseguiu. Mas só havia uma maneira de garantir o tal nível que ele ambicionava: limitar o número de clientes. Assim, o seu O Leão Vermelho abre cada noite para apenas quatro pessoas. O chef brasileiro de 25 anos esteve recentemente em Lisboa para participar na Rota das Estrelas no restaurante Eleven, e descreveu à Fugas o que são essas noites na antiga casa dos seus avós e naquele que – imaginamos, porque não são reveladas imagens para não estragar a surpresa – é um cenário de histórias de encantar.

“O Leão Vermelho tem dois andares”, descreve. “Os comensais chegam pelo jardim, entram pelo salão, que é a sala da árvore, atravessam a cozinha de produção, a de finalização, comem na sala de chá e depois na sala de licores. Cada sala é só para quatro pessoas, não existe a possibilidade de aumentar o número”. Claro que já lhe sugeriram muitas vezes que ele recebesse quatro pessoas em cada sala, o que poderia aumentar para 12 o número total de clientes. Mas não é esse o tipo de experiência que Gabriel quer.

“As salas têm estes nomes por causa da cenografia e todos os cenários, que mudam conforme as temporadas, são construídos com o menu. Tudo tem um porquê, uma razão. Não é simplesmente uma mesa em que a pessoa vai sentar-se e comer. Isso é muito importante no meu trabalho”, explica. E a construção desse cenário é inteiramente da responsabilidade de Gabriel – “é quase uma missão suicida”, diz – que pensa, desenha ou escolhe cada móvel, cada objecto. Tudo é feito localmente porque O Leão Vermelho pretende ser um reflexo de São João da Boa Vista e da região – apesar de, segundo Gabriel, as pessoas da terra não fazerem ideia do que é o seu trabalho.

“São João da Boavista é uma cidade que foi colonizada essencialmente por italianos e portugueses. As nossas tradições culinárias estão muito enraizadas nisso”. Para o jantar no Eleven, onde teve como anfitrião o chef Joachim Koerper, Gabriel trouxe “alguns pratos que são reflexo da pureza local” mas que consegue “traduzir com os ingredientes universais”: uma sopa de couve-flor e frutos secos (os amigos brincaram com ele, perguntando-lhe se ia atravessar o Atlântico para vir cozinhar uma sopa de couve-flor); um peixe com batatas assadas e fumadas; e um sorvete de leite de cabra com biscoitos amanteigados.

“São pratos que retratam a minha raiz camponesa e os ingredientes universais trazidos pelos colonos europeus. A minha matéria-prima é muito simples, batatas, cenouras, manteiga, frutas, um bom pedaço de queijo, um pão feito como deve ser. Não é nada fora do mundo”, garante. “Mas dentro dessa paleta de aromas eu encontro o meu espaço carismático e é aí que as coisas se transformam e as pessoas conseguem entender o meu trabalho.”

Os gelados, por exemplo, têm uma explicação muito simples. “No menu que apresentei no Eleven, a sopa e o sorvete são muito lácteos, e isso é uma característica do meu trabalho. Fui criado numa fazenda leiteira, a minha mãe fazia queijos, quando tinha entre 8 e 14 anos trabalhei na sorveteria, o lácteo tem um apelo sentimental muito grande para mim.” O resto, bem, o resto são apenas cebolas e batatas, diz, com sorriso de menino. “As batatas não têm nada de mais, mas no nosso universo sempre tiveram um apelo festivo. Um dos pratos que mais gosto é ombro de boi com cebola e batatas – só isso, e é realmente muito bom.”

Assim, num país em que muitos chefs usam os exóticos ingredientes amazónicos ou exploram as (muito diferentes) tradições culinárias das respectivas regiões, Gabriel quer falar de uma terra que não é assim tão diferente. “O património culinário brasileiro é muito rico, há a cozinha da Amazónia, que é esplendorosa, a do Sul, a do cerrado, mas eu não sou de nenhum desses lugares, a minha cidade é muito europeia e é muito jovem, tudo o que tem lá foi levado pelos imigrantes”.

Talvez por isso quando o ouvimos descrever O Leão Vermelho reconhecemos, numa versão encantada, as casas dos nossos avós. “Na sala dos licores tem oito licores, é a forma como a gente se despede de você. Tudo começou com uma caixinha de costura com biscoitos em forma de botões, canudinhos de doce de leite, foi ela o ponto de partida para esta sala, que é toda revestida a madeira, tem a pele de alguns cordeiros felpudos, tem vista para a serra, é um conto de fadas.”

Fábulas, mitos e estrelas

Tal como todo o universo de Gabriel Vidolin – os seus menus têm nomes como Jamais me Abandone (foi o Leão Vermelho que lhe pediu isso numa altura em que, depois de um investimento pessoal de perto de 65 mil euros, os problemas financeiros o estavam a fazer vacilar) ou Atlas (quando a equipa aumentou e o projecto ganhou outras vertentes, Gabriel lembrou-se como, na mitologia, Atlas foi condenado a carregar o firmamento inteiro nas costas pelo resto da eternidade, e era assim que ele se sentia).

Depois, e porque quer ter um menu acessível e adora fazer comida caseira, criou o Jardim e Estrelas (17 euros) de terça a quinta-feira, ou às sextas o Somos um Céu Cheio de Estrelas (versão reduzida do menu Atlas), ao sábado tem o Atlas (perto de 90 euros, 24 pratos, que em breve será substituído por um novo tema) e ainda, aos domingos, a Fábula de Domingo, um menu para crianças inspirado por La Fontaine.

Houve muitas dificuldades pelo caminho, mas agora o projecto encontrou uma forma de ser sustentável, com uma área de mecenato, outra de gestão das reservas e uma de produção de eventos de catering e teatrais, e vai continuar assim por mais quatro anos.

Depois disso o Leão Vermelho “vai converter-se noutra coisa, algo com a mesma essência mas mais grandioso”. Por isso, quem quiser comer no jardim das maravilhas de Gabriel pode aproveitar os próximos quatro anos para descobrir por que artes mágicas, na casinha encantada de São João da Boa Vista, uma batata pode ser mais do que uma batata.

Nome
O Leão Vermelho
Local
Estrangeiro, Brasil, São João da Boa Vista
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0
Cozinha
Autor
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