Há histórias que ouvimos uma vez e nunca mais esquecemos. “A das amêijoas chega-me através de um amigo que me pergunta: sabes que há uns tipos que vão aos Açores em jactos privados só para comer umas amêijoas?”, recorda Paulo Salvador, jornalista da TVI e autor do livro Mesa Nacional (Oficina do Livro). Tinha-a ouvido há muito tempo mas lembrou-se imediatamente dela quando começou a fazer o programa Mesa Nacional – que deu origem ao livro com o mesmo nome, editado pela Oficina do Livro.
Mas não era fácil perceber se se tratava de um mito ou se existia por trás dela alguma base real. “Falava com pessoas dos Açores e elas não sabiam. Ou se calhar algumas sabiam mas não valorizavam. Muitos dos sítios que descobri neste trabalho são fantásticos e as pessoas não têm consciência disso, ou, em alguns casos, preferem que não se fale para que continue a ser algo de único e isolado.”
As amêijoas da Fajã da Caldeira de Santo Cristo, na ilha de São Jorge, são talvez o caso mais radical que encontrou. “É um sítio que só abre três meses por ano, é genuinamente imprevisível. É um local onde vivem cinco pessoas, um buraco no tempo e no espaço.” Mas as amêijoas, essas são extraordinárias, “enormes, carnudas, deliciosas, que quase se podem comer de faca e garfo”, descreve Paulo Salvador no livro.
Mesa Nacional – tanto o programa como o livro – é esta viagem por restaurantes “únicos e inesperados”, que o jornalista foi descobrindo perguntando aos amigos, como quem não quer a coisa. “Tenho vários critérios: se o sítio tem um prato que é uma especialidade, a personalidade do dono, a história do restaurante e o local onde está inserido.” E, critério fundamental, tem que estar fora dos centros urbanos.
Às vezes o próprio amigo que recomendava o sítio tornava-se personagem da história. Aconteceu por exemplo com o gastrónomo Reis Torgal, que lhe falou no Bacalhau Racheado. “Claro que há bacalhau em todo o lado, mas depois há um que é um bocadinho diferente”. E este, do Fentelhas, em São Torcato, Guimarães, é “racheado” porque “se abre à racha”. Outra companhia imperdível foi a do chef algarvio Leonel Pereira, do São Gabriel, que serviu de anfitrião na visita de Paulo (e do operador de câmara Ricardo Ferreira, companheiro indispensável destas aventuras) à Tasca do Petrol, perto de Monchique.
Mas se, de vez em quando, há um convidado especial, na maior parte das vezes os heróis destas histórias são mesmo os cozinheiros e os lugares únicos que conseguiram criar. “Estes restaurantes só existem porque são familiares, com muitos anos. Alguns, com os preços que praticam, só se aguentam porque são um negócio de família. E com a crise começam a ficar em perigo.”
Algumas histórias são de uma verdadeira paixão pela cozinha e pela ideia de ter um restaurante. Perguntamo-nos, por exemplo, como fazem José Freitas e Nélia para conseguir manter o seu Pôr do Sol, um discreto paraíso na ilha das Flores. “Abdicam de domingos e feriados”, conta Paulo no livro. “Ele é bancário e ela também trabalha fora, mas lá vão arranjando forma de manter o Por do Sol a funcionar, como uma espécie de hobby a tempo inteiro. Falam sem queixumes do trabalho que não acaba. Estão felizes com o seu cantinho.”
“Não estão ali para ganhar dinheiro”, resume o jornalista. “Estão porque é uma coisa de que gostam. É uma postura diferente da do tipo que abre um restaurante em Lisboa para ganhar dinheiro.” Às vezes nestes locais até estranham a vinda de uma televisão. “Perguntam-me: porque é que veio cá? Não estão habituados a que os tratem com a mesma deferência com que tratam um restaurante da capital. E não estão ali para aparecer nas revistas. Estão a fazer o seu trabalho, é a vida deles.”
Em alguns casos, recorda Paulo, a visita da TVI mudou a vida destes restaurantes. O caso mais evidente foi o da Adega Monhé, em Santa Maria da Feira. O mediático cozido dentro de um pão, criado por Luís Sottomayor, não podia ter sido mais fotogénico e depois de a reportagem passar na televisão o cozinheiro ligou ao jornalista a dar-lhe conta da verdadeira invasão de clientes que o restaurante sofrera.
Mas, afinal, o que torna estes pratos tão especiais? “Às vezes a comida pode não ser estupidamente bem feita, mas é feita de forma genuína”, afirma o autor. “E, sobretudo, há os ingredientes. A batata ou a couve parecem ter outro sabor. No fundo, muitos fazem aquilo que os chefs hoje também fazem que é ir buscar ao quintal para pôr no prato. Essa autenticidade da matéria-prima ainda existe. Não estamos a comer carne ou batatas do hipermercado”, explica. “Come-se um arroz branco num sítio destes e tem outro sabor. É a água? Talvez. É o alho? Não sei. O que sei é que encontramos sabores que nos confortam, sabores de memória, regressamos à base, à matriz.”
E será este um mundo a desaparecer? “Não sou pessimista, não acho que vá tudo acabar, acredito que vai haver alguns resistentes, mas também acho que vai ser cada vez mais difícil encontrarmos coisas simplesmente boas”. Muitas vezes quando o restaurante passa de uma geração para a seguinte, os mais novos “começam a fazer as coisas boas e antigas de maneiras mais modernas, vão buscar os sabores antigos, mas usando técnicas modernas”.
Talvez, no processo, se perca alguma da autenticidade destes locais. “Aquela coisa simples, muito ‘primitiva’ da comida, tem tendência a desaparecer”. Mas, ao mesmo tempo – como se vê no caso de Leonel Pereira e da Tasca do Petrol – estes sabores antigos estão a inspirar também os chefs, que os recuperam, trabalhando-os de outras maneiras. Há, portanto, influências mútuas. O que confirma que nada se perde, tudo se transforma.
Título: Mesa Nacional – Viagem por restaurantes únicos e inesperados
Autor: Paulo Salvador
Editora: Oficina do Livro
PVP: 13,90 euros