“Uma crista de galo nunca é consensual”. De facto. Mas isto é o Loco, o novo restaurante de Alexandre Silva, junto à Basílica da Estrela, em Lisboa, e uma crista de galo é algo que pode perfeitamente aparecer no meio de um dos menus de 14 ou 18 “momentos” (entre snacks, pratos, sobremesas e outras surpresas).
Alexandre Silva – que passou pelo Bocca (entretanto desaparecido), pela Bica do Sapato e pelo Alentejo Marmòris Hotel & Spa, em Vila Viçosa, e que tem um espaço no Mercado da Ribeira – sabe o que quer. Sempre soube, aliás, desde o tempo do projecto 4th Floor – Cozinha Experimental, em que recebia as pessoas na sua própria casa e lhes apresentava pratos inesperados criados numa minicozinha.
Mas ele próprio reconhece que nesse tempo, e no do Bocca, era ainda “muito imaturo”. Queria que os seus clientes fossem ousados e dispostos a arriscar e tinha dificuldade em compreender que muitas vezes eles fossem apenas conservadores e muito menos disponíveis do que ele desejaria. Foi preciso deixar passar algum tempo. Hoje, e depois de um ano a preparar a abertura do Loco, Alexandre Silva está pronto. E parece que os portugueses também. “As pessoas querem experimentar coisas novas. Os clientes são cada vez mais informados e já há pouco que os surpreenda. Uma refeição pode facilmente tornar-se cansativa e chata e aqui não quero que isso aconteça.”
No Loco há de tudo. Quando nos sentamos, um snack – carasau, um pão típico da Sardenha – está pendurado em fios por cima das nossas cabeças. A certa altura, alguém chega com uma colher e dá-nos de comer à boca. Cozinha-se nas mesas e o pão (que pode ser de muitas coisas, incluindo cânhamo) é considerado um prato.
Alexandre pode finalmente ser louco na sua cozinha. Mas o melhor será dar-lhe a palavra para ele nos explicar o que é o Loco. Pedimos-lhe para descrever o seu conceito de cozinha e os menus que aqui apresenta através de quatro momentos que pretendem – como, aliás, muitos outros ao longo do jantar – ser desconcertantes. Começamos por um dos snacks.
Mexilhão
“É um snack que se odeia quando se prova.” É assim que o chef o resume. O objectivo é mesmo esse: tirar o cliente da sua zona de conforto, fazê-lo questionar-se e levá-lo a uma descoberta. A primeira sensação é de doce, um doce excessivo, que vem da redução a frio de dois sumos, um de maçã Granny Smith e outro de raiz de aipo.
“Em vez de usarmos temperatura, que faz desaparecer os aromas, reduzimos a frio no alambique a vácuo”, explica Alexandre. “Levamos a colher à boca e é muito intenso, mas como leva chalota crua picada, tomate cru, o mexilhão é aberto com vinho branco, leva um pouco de malagueta, depois do doce começa a vir tudo o resto, a chalota, o vinho, o mexilhão, com uma enorme intensidade. E fica tudo equilibrado.”
Este é um dos nove snacks servidos no primeiro de quatro “andamentos” da refeição no Loco. “É um menu em que não evoluímos do menos intenso para o mais intenso. Há altos e baixos, pode haver um murro de sabor e depois um sabor muito subtil.”
Os snacks são servidos em bom ritmo. “Nesse primeiro andamento é tudo muito rápido, as pessoas quase não têm tempo para pensar. Não quero que a refeição tenha momentos mortos”, diz Alexandre. Um snack come-se numa dentada e é dado apenas o tempo suficiente para que os clientes percebam o que comeram, pensem um momento sobre isso, e, de repente, lá vem outro snack. É nesta fase que surge um, de atum, servido numa colher à boca. Nunca ninguém recusou? Houve apenas dois clientes, conta o chef, que não aderiram, mas em geral as pessoas, apanhadas de surpresa, limitam-se a abrir a boca. “É um momento que serve para quebrar o gelo e pronto, a partir dali vale tudo.”
Pão
Quando termina o sprint das entradas, chega o primeiro prato. E também esse momento pode ser desconcertante, porque o primeiro prato é… o pão. “Nesse momento muitos clientes quase que dão um suspiro de alívio.” E então, sim, há uma pausa de “uns 12 a 15 minutos”. Na mesa estão diferentes pães (no dia em que a Fugas fez a entrevista, o pão era feito com o mosto da cerveja), várias manteigas e um molho – “a típica molhanga portuguesa” – e pretende-se que as pessoas os comam com calma até ao final (supostamente o pão não é para guardar para se ir comendo ao longo da refeição).
“Dedicámos muito tempo ao pão, queremos que as pessoas sintam o ritual, que é algo ao qual a maior parte das vezes não ligamos muito”, explica Alexandre. “Quisemos colocar o pão na mesa e deixá-las falar sobre ele.” Os outros pratos principais virão a seguir mas para que as pessoas se possam orientar nesta refeição com uma estrutura muito própria, os quatro “andamentos” são explicados no início. E o pão marca a transição entre o primeiro e o segundo.
Crista de galo
Seguem-se outros pratos, num “andamento” que pode terminar com, por exemplo, crista de galo. “Nunca apresentamos esse prato e no final perguntamos ao cliente se ele sabe o que comeu.” Há quem pense que é orelha de porco ou mão de vaca, mas quase ninguém sabe exactamente o que é e a que sabe a crista de galo.
“Foi um prato que testámos muito. É algo que quase ninguém cozinha mas que já se usou muito no campo, sobretudo no Ribatejo.” No Loco, a crista é panada. “Muito inspirados pela escola do elBulli [o famoso restaurante do espanhol Ferran Adrià, entretanto encerrado], tentámos várias formas. Eles agarravam num produto e desintegravam-no em mil coisas diferentes, nós agarrámos na crista e fizemo-la de imensas maneiras, desde puré até assada no forno ou panada. Provámos e esta é a textura mais agradável.” Antes disso é cozida com sementes de coentros, o que lhe dá um sabor a especiarias.
A certa altura este era o prato que terminava o terceiro “andamento”. Mas na cozinha do Loco debatia-se um problema: todos os restaurantes de fine dining terminam a refeição com um prato de carne de cortar à faca. Deveriam eles ignorar isso? Até que ponto poderiam ser experimentais e diferentes de tudo?
Vamos fazer aqui um desvio para explicar melhor a forma de trabalhar do Loco. Apesar de o restaurante servir apenas jantares, a equipa chega pelas nove da manhã. É preciso preparar tudo, mas também é preciso “tempo para criar”, sublinha Alexandre Silva. “Esse tempo tem mesmo que existir. E quando não há, quando ninguém propõe nada, essa questão é debatida no briefing do dia seguinte. Criamos com a equipa toda cá, um faz um molho, perguntamos onde poderá encaixar, melhoramos algumas coisas, pensamos como poderemos passá-lo para a mesa.”
Esta é uma preocupação constante: o prato tem que ser delicioso, mas a encenação com que é apresentado é também muito importante. Um bom exemplo é a chamada “captura do dia”, um peixe que é apresentado de maneiras diferentes. Quando a Fugas visitou o Loco, o peixe do dia era robalo, cozinhado numa infusão feita com as cabeças, cogumelos fermentados, malagueta, coentros, katsuobushi (flocos de atum seco) e preparada num balão de café à mesa.
Mas as coisas podem mudar – e aqui mudam com bastante frequência, daí a necessidade de criar novos pratos todos os dias –, pelo que a “captura do dia” pode noutra ocasião ser um peixe cozinhado a vapor, numa folha de bananeira, com temperos tailandeses e portugueses. “O cliente tem que desembrulhar o peixe e colocá-lo numa hóstia feita de um arroz de peixe. No final vem uma bebida emulsionada de coco com os temperos do peixe.”
A ideia é que haja sempre um ritual. E, voltando, ao problema da carne para terminar a refeição, Alexandre encontrou uma alternativa, também ritualizada: borrego, enrolado em folha de alga e cozinhado dentro de argila que se parte na mesa. “É uma oportunidade para as pessoas verem técnicas arcaicas como esta, que vem dos maias e dos aztecas.”
Café
Para terminar, café, claro. Mas não podia ser um café qualquer. “Foi algo que nos deu algum trabalho mas também algum conforto”, resume Alexandre. “Andámos a pesquisar muito tempo, fizemos uma parceria com a Corallo [loja de chocolates e café], tivemos alguma formação, falámos muito sobre cafés, o nosso primeiro lote fomos nós que o torrámos.”
E assim a refeição acaba com mais um ritual: o café de balão. E com ele vêm os petit fours (as sobremesas são trabalho do pasteleiro Carlos Fernandes, elemento importante da equipa, que conta também com o escanção Sérgio Antunes) apresentados numa impressionante caixa de costura.
“Acabamos com um regresso ao passado, às memórias de um café de balão e uma caixa de costura. É reconfortante.” Durante o jantar saímos várias vezes da nossa zona de conforto, mas no final a aventura “loca” neste “país das maravilhas” acaba na paz caseira de uma sala de estar dos nossos avós, com o Chapeleiro Louco finalmente adormecido no sofá.
- Nome
- Loco
- Local
- Lisboa, Lapa, Rua dos Navegantes, 53 B
- Telefone
- 21 3951861
- Horarios
- Domingo, Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado