Diz a má língua que a Graça se enche de gente quando os primeiros raios de sol voltam da noite. É a vida que acontece naturalmente: os passeios de família na segunda-feira de Páscoa, os pequenos-almoços nas pastelarias do Largo, as voltas nas lojas do bairro. E os turistas que passam os olhos pelos prontos-a-vestir, as cabeleireiras e a sapataria que começa a Rua da Senhora do Monte. Sobem a rua a caminho do miradouro.
No passeio, passam por um restaurante com a cozinha à vista, virada para fora. Tem almofadas junto à janela para sentar à mesa e uma luz enorme entra por ali. Quando Liliana Escalhão e Vítor Augusto abrem a porta do Má Língua, um espaço de petiscos e vinhos no número 1 a caminho do miradouro, o pão já está em cima da primeira mesa de madeira. Trouxe-o o padeiro, de Mafra.
Há duas semanas que ali se serve Portugal à mesa, pelas receitas de uma designer que se rendeu à criatividade no prato. Quase tudo é nacional, comprado a pequenos produtores. Quase tudo é acompanhado com pão: o azeite do Alentejo, as alheiras de urtigas, os enchidos das Beiras, os queijos de Azeitão, os de Alcains e os da Ilha das Flores. O peixe do dia vem de uma peixaria de um amigo na Praça das Flores. O bolo lêvedo é comprado à Companhia dos Açores, que representa pequenos produtores da ilha.
Muito nesta carta é “um atrevimento”. Liliana, a designer que a assina, “não gosta da cozinha aborrecida”. É por isso que mistura cavala com pesto de coentros numa tosta (4,70 euros), completa a tiborna de morcela com maçãs, nozes e mel (9,50 euros) e serve o grão tostado com paprika (2,50 euros). São “petiscos pensados para um copo de vinho”.
O Dito Cujo, um biscoito de chocolate, nozes e leite condensado (1,30 euros), encerra as hostilidades. Para quem conhece não é um biscoito qualquer, é o famoso do Primeiro Andar, o restaurante e bar que Liliana e Teresa Mota Ferreira geriam no Ateneu Comercial de Lisboa, fechado desde Julho do ano passado.
A ementa é feita para sentar à mesa amigos de todos os feitios. “O que é difícil em Lisboa é conciliar as várias formas de comer” de comer no mesmo espaço. Por isso, Liliana fez por resolver o problema logo à partida: há pratos vegetarianos, há veganos, sem glúten e sem lactose devidamente assinalados.
Natural de Castelo Branco, Liliana é filha de “excelentes cozinheiros”. Desde os tempos de estudante na capital se deixou meter no meio dos tachos: trabalhou a part-time na restauração, fez formações, criou um blog. o “Amigos e Sabores”, deu-se o feedback que lhe faltava para olhar a cozinha de frente, como um projecto de futuro.
Vítor, “natural dos arredores de Lisboa” e antropólogo de formação, é o responsável pela selecção de vinhos, o “manda chuva” da agenda artística que o espaço quer ter. “É a nossa casa, mas é a casa de outras pessoas que podem dar a conhecer o seu trabalho e fazer acontecer aqui coisas”. Faz parte do conceito do Má Língua ter programação cultural: concertos, ciclos de cinema, exposições, jam sessions.
Mais do que nunca sentem que abriram as portas de casa. Os móveis compraram-nos numa das lojas solidárias da Associação Remar, que vende peças usadas e cujo valor reverte para o apoio a pessoas socialmente excluídas. Tudo o resto torna este espaço numa “galeria da arte dos amigos”. Os candeeiros e as prateleiras são obra de Hugo Zuzarte, da Toro Oficina. João Abreu Valente (Studio JAV) assina a autoria das loiças. Os macramés e almofadas são da NÓ, de Teresa Mota Ferreira, e até os amigos cantam. John Douglas abriu esta quinta-feira as hostes de uma agenda cultural que se quer cheia e diversa.
“Não fazemos senão partilhar”, Rita di-lo como se o conceito fosse, não só a introdução do espaço, mas também o seu resumo. “É feito para partilhar comida, partilhar a mesa, partilhar do teu trabalho e do trabalho dos outros”, explica Vítor.
“Mantinha e cestinha”
Ter um restaurante na Graça era “uma obsessão”. Liliana e Vítor já viviam no bairro, há muito que se apaixonaram por “este lugar que tem o melhor dos dois mundos”: um equilíbrio entre o bairrismo lisboeta e o turismo.
Mas saber disto do bairrismo é uma coisa, senti-lo de perto “dá outro arrepio”. Tão cedo não vão deixar de ficar surpreendidos sempre que a “vizinha daqui da frente”, que trouxe bolinhos para a inauguração, entrar pela porta com algum doce nas mãos. O “cheesecake da vizinha” também já está na ementa. Noutro lugar viria um vizinho como Luciano matar a sede dos recém-chegados durante as obras?
“Queremos fazer parte do bairro e recebe-los tão bem como eles nos recebem, parece-nos a moeda de troca”, diz Liliana. Talvez por isso lhe tenha surgido a ideia de levar os petiscos para fora do restaurante: mediante o pagamento de uma caução, pode levar um piquenique, “cestinha e uma mantinha”, para o miradouro da Senhora de Monte. Rua acima, conversa ao lado, os petiscos e o vinho na cesta.
- Nome
- Má Língua
- Local
- Lisboa, Graça, Rua da Senhora do Monte, 1C
- Telefone
- 0
- Horarios
- Segunda-feira, Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado das 12:00 às 01:00