Fugas - restaurantes e bares

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Fábulas de uma boa mesa

Por Fortunato da Câmara ,

O Pátio dos Petiscos não se apresenta “curvo” a regionalismos e também oferece sem medo especialidades tradicionais para tentar agradar a todos os que o visitam. Para verificar o resultado é ir a Montemor-o-Novo, à rua do poeta Curvo Semedo.

“Do que observo me confundo / Por mais qu’a gente se mate, / Nunca tapa a boca ao mundo! / Rapaz, vamos com dantes, / Sirvam-nos estas lições! / É mais que tolo quem dá / Ao mundo satisfações”. 

A citação é da última estrofe da fábula O Velho, o Rapaz e o Burro, de La Fontaine, onde as três figuras titulares tentam agradar a todos com quem se cruzam sem conseguirem satisfazer ninguém, por isso tomam a decisão que lhes parece mais sensata. A tradução em português é da autoria de Belchior Curvo Semedo, um poeta e fidalgo da Casa Real entre os séculos XVIII e XIX. 

A metáfora ajuda a perceber um pouco melhor o restaurante Pátio dos Petiscos, situado na rua epónima do célebre fabulador-mor, bem no centro da alentejana cidade de Montemor. Curvo Semedo ficou para a história como um dos grandes prosadores da época, sendo contemporâneo (e rival) de Bocage e de Francisco Malhão, outro fabulador de nomeada. Não deixa de ser curioso verificar que o anfitrião deste Pátio dos Petiscos se chama igualmente Francisco Malhão, mas que sem as delongas dos contadores de histórias do passado usa o pragmatismo para fazer um espaço abrangente e convivial onde se tenta agradar a todos. 

Em finais de Março a ementa exibia choco frito com gambas, cataplana de cherne, açorda de marisco, bacalhau à Brás, enfim, uma selecção pouco alentejana para o que se esperaria, mas também lá figurava uma típica sopa de cação ou um lombinho de porco recheado. A verdade é que os de fora procuram naturalmente o que é local sem pensar que os locais também gostam de “comer fora”, e de preferência coisas que não sejam as habituais de casa, como as migas ou a sopa de cação, pratos que uma doce avozinha temperará com amor ao fazer o repasto semanal de família. Perante esta dicotomia de interesses se percebe a opção por uma lista que mistura tradicional com regional. Cumprindo o papel de forasteiros procurámos os pratos típicos da lista. 

Sem surpresa abriu-se com uma dupla clássica por estas paragens, através de bom “pão” (1,20 euros) e iguais “azeitonas” (0,95 euros). Das entradas petisqueiras vieram os “ovos com linguiça” (4,35 euros), em que o enchido, de qualidade regular, beneficiou da suave consistência dos ovos, húmidos e devidamente mal mexidos, o que ajudou a tornar o conjunto agradável. Nas “pataniscas de bacalhau” (1,50 euros/cada) o primeiro destaque vai para a boa decisão de as fazerem ao momento. Assim, chegaram quentes e bem crocantes, saborosas na sua aparência espalmada (tipo “isca” de bacalhau), faltando-lhes apenas um pouco mais de generosidade no bacalhau. Um estufado apuradinho envolvia as “moelas de tomatada” (5,75 euros), com o molho a ter a acidez equilibrada para fazer sobressair a frescura do fruto, sem exagerar no eventual golpe de açúcar balanceador. 

Numa incursão além das planícies pediu-se a “vazia especial maturada” (13,95 euros), um produto que parece ter entrado na moda, em boa hora, diga-se, pelo menos até que comecem os abastardamentos useiros dos fornecedores pantomineiros. Veja-se a saraivada de pseudo “porco preto” que se abateu sobre todos os menus. As bolotas já devem estar em vias de extinção… Voltando à vaca “madura”, proveniente de Barcelos (Carnes Linda Rosa) segundo foi indicado, era um corte alto de grande qualidade, grelhada a preceito, a manter o interior suculento e rosado, que vinha fatiada e temperada apenas com sal marinho. Sem dúvida uma “vazia” de encher as medidas, que além da boa batata frita trazia um revogável trio de laranja, morango e abacaxi. 

Voltou-se ao trilho culinário da região com a “carne de alguidar com migas de espargos” (9,45euros/meia dose) a mostrar uma competente fritura em banha (o ponto de fumo da banha a 182ºC é superior ao de alguns óleos e ao do azeite extra-virgem), suportando melhor o calor, deixando a carne crocante e seca por fora, mas mantendo-a tenra no interior, a lembrar os bons rojões. As migas bem enroladas no “pingo” da carne temperada com o pimentão, e sem os exageros de sal que se apanha frequentemente, com os espargos a darem um sabor verdeal desenjoativo ao prato. A “cabidela de galinha” (9 euros/meia dose) era de frango do campo, ao contrário do enunciado, com o caldo a estar mais “corrido” que na versão minhota. Ainda que estivesse mais “malandro” que “apurado”, vinha com afinação certeira na proporção sangue e vinagre, isto numa meia dose generosa servida em tacho.

A decoração é simples, com o espaço a dividir-se por salas e salinhas apetrechadas de forma confortável, embora à primeira vista pareça mais elaborado do que na realidade é. Há individuais de papel para cada prato e talheres colocados sobre um vidro que protege as toalhas de pano, mas que reduz um pouco o conforto à mesa. 

Serviço simpático, afável e globalmente positivo, embora com insuficiências a superar. O vinho não foi aberto presencialmente (apenas mostrado) e, não obstante a temperatura estar aceitável, não foi dado a provar antes, sendo servido de imediato. Copos de formato standard para a função vínica, exibindo o patrocínio de um produtor local plasmado no vidro. Com a casa mais composta, os deslizes na sala podem aumentar devido ao excesso de solicitação, sobretudo em dias de futebol, quando, inexplicavelmente, o volume da televisão (será preciso o som para se ver futebol?) pode atirar as conversas à mesa para a condição de “som ambiente”. Havendo mais do que uma sala, como é o caso, talvez justificasse a existência de dois ambientes diferentes, ajustados ao que os clientes procuram ou adaptando as circunstâncias do momento. Há vida além do futebol… 

A carta de vinhos parece ser previsível, sendo apresentada e apreçada de forma estranha, com a “originalidade” de ter brancos e tintos ao mesmo preço, o que não valoriza a oferta nem considera o cliente. Há cerca de trinta referências divididas sumariamente por tintos, brancos, verdes e rosés, sem indicações de anos de colheita nem regiões, embora a maioria sejam alentejanos. O inesperado é ver que em alguns recantos há escaparates de madeira e armários refrigerados com uma selecção bem mais alargada e interessante além do papel, onde estão algumas boas opções ao nível de rótulos e preços. Ou seja: organização precisa-se!

Nas sobremesas há a oferta conventual característica da zona mas a opção foi experimentar umas menos vistas e humildes “papas de Arraiolos” (2,50 euros) servidas dentro de uma vistosa taça de massa choux a lembrar pétalas, que trazia então as papinhas doces consistentes, aromatizadas com baunilha, laranja e uma pitada de canela. A consistência das papas permitiu colocá-las em espiral com a ajuda de um saco de pasteleiro, ficando mais estéticas, além de agradáveis. De sonho estava a fabulosa “torta de coco” (2,85 euros), a enrolar na perfeição a fina massa de bolo com cerca de 0,5cm de espessura que envolvia um belíssimo e húmido recheio de coco e doce de ovos. 

Para que não fiquem dúvidas, este Pátio dos Petiscos agrada muito na qualidade da sua cozinha e tem ainda a boa intenção de querer agradar a todos na ementa, e até em aspectos laterais à mesa. É nitidamente um espaço de encontros onde se cruzam pessoas que querem conviver à volta de uma boa refeição, outras que preferem socializar ao assistirem a um jogo de futebol, ou aquelas que vão beber um copo e petiscar. Nada a opor, o segredo talvez seja “arrumar” os clientes nos vários espaços quando a ocasião o exigir, pois como refere a fábula inicial nem sempre é possível agradar a todos. O facto é que cada vez se convive menos em sociedade, e neste aspecto o Alentejo sempre foi cultor de relações à volta dessa instituição regional que é o copo e o petisquinho — e por nada se deve perder o velho costume de “aparar” a casaca, e deixar a navalha para “cortar” o queijinho…

Nome
Pátio dos Petiscos
Local
Montemor-o-Novo, Nossa Senhora da Vila, Rua Curvo Semedo, 39
Telefone
266890038
Horarios
Domingo, Segunda-feira, Terça-feira, Quarta-feira, Sexta-feira e Sábado das 12:00 às 15:00 e das 19:00 às 22:00
Website
http://patiodospetiscos.pt/
Preço
20€
Cozinha
Trad. Portuguesa
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