Fugas - restaurantes e bares

  • João Cordeiro

Soalheiro no prato, menos solarengo na sala

Por Fortunato da Câmara ,

O Solar dos Nunes vai fazendo a seu caminho há mais de 25 anos. Numa época em que outras casas históricas se vão perdendo na história, este “solar” tem uma cozinha competente e de memória onde se pode ter uma refeição agradável, mas por um valor pouco recomendável.
As mudanças na paisagem restaurativa de Lisboa continuam a anunciar novas mesas de perfis diversos, mas infelizmente também vão deixando alguns símbolos da cidade ficar-se pelo caminho. A notícia do encerramento de espaços carismáticos como o Coelho da Rocha”e o Isaura, que nos seus estilos marcaram épocas e gerações de clientes, é sintomática do que a nortada germânica fez aos bolsos de muitos, cuja alteração dos hábitos de consumo resulta por vezes neste tipo de danos colaterais.
 
No sentido oposto a estas novidades desagradáveis e tonitruantes para memória futura, é bom verificar como andam outras casas do mesmo registo que, não estando na rota do mediatismo dos chefs e seus acólitos comunicantes, mantêm a sua actividade de forma discreta, mas concreta, como é, por exemplo, o caso do Solar dos Nunes.
 
Traduzindo uma tirada da gíria inglesa, “não haver notícias, são boas notícias”. Por aqui não parecem existir grandes novidades em relação aos pratos que vêm construindo o nome sólido da casa há um quarto de século - data que se assinalou em 2013. Em 1988 a família Nunes abriu portas para trazer as suas raízes alentejanas até à capital, mas ao longo dos anos foi acrescentando pratos de cariz mais tradicional que regional à ementa, que hoje se apresenta numa lista que está muito além de ser apenas abrangente.
 
O menu é, eu diria, quilométrico para os dias de hoje. Só nos pratos principais a oferta anda pelas 50 propostas, sem entrar nos pratos do dia e deixando de fora as mais de uma dúzia de entradas, o que, convenhamos, deixa qualquer um especado sem saber por onde pegar nas provas. Ao fim de algumas perguntas percebe-se que a lista é uma espécie de declaração omissa do género: estão aqui todos os pratos que sabemos fazer, pode é não haver algum! Como se verificou ao não haver ensopado de eirozes ou quando nos foi dito que um outro ingrediente principal (apesar de estar em condições) não tinha vindo com as características esperadas e por isso o chef não recomendava a escolha - um gesto que é de louvar.
 
Depois destes tiros ao lado ficou ainda muito por explorar, como por exemplo um nortenho bacalhau à tia Narcisa, uma cataplana de cherne com lagosta (duas pessoas), o cherne com champanhe ou a famosa especialidade da casa, que é a sopa rica de peixes (duas pessoas). Nas carnes, há Alentejo nos lombinhos de porco preto com açorda de alho, no cabritinho do monte frito à alentejana, mas também derivações no tornedó à príncipe de Gales ou na espetada do lombo no pau de loureiro. A caça é outro mundo à parte, com a lebre no pote com feijão branco, os lombinhos de veado à rei D. Luís, o pernil de javali à Monteiro ou o coelho bravo frito ao alhinho com açorda.
 
Antes de nos sentarmos, já tinham assentado na mesa vários pratinhos de entradas a mostrarem que também nisto a tradição ainda é o que era, ou seja, contraditória. Vamos caminhar um pouco pela história. Os restaurantes nasceram da Revolução Francesa em finais do século XVIII e vieram permitir que se pudesse escolher os pratos em vez de os mesmos serem (im)postos na mesa, como acontecia nas hospedarias de beira de estrada. 
 
Este aparte não tem de todo que ver com o Solar dos Nunes em particular, serve apenas para identificar um modo de abordar o cliente que ainda se vai vendo muito por aí e que já está desactualizado a todos os níveis, seja em cordialidade ou na frieza da legislação, onde grosso modo é explicado que “os produtos não solicitados são considerados ofertas e não podem ser cobrados” (DL 24/96, art. 9, ponto 4). No entanto, para não se perder a vertente comercial associada a este gesto de “encher a mesa de coisas”, poderia o serviço de mesas trazer a selecção proposta, explicar e cativar o cliente para os petiscos, e deixar a escolha ao seu critério. 
 
Reorganizaram-se as entradas aterradas na mesa, devolveram-se as propostas não desejadas e lá ficou uma muito boa “saladinha de porco preto” (5 euros), feita apenas com os fígados cortados em viés, avinagrados na medida certa e temperados com azeite e coentros. Os “pimentos à andaluza” (5 euros) eram desde logo surpreendentes pelo sabor e consistência carnuda nesta época do ano - o facto de serem assados, temperados com lâminas de alho, e terem um bom equilíbrio entre azeite e vinagre, só valorizou mais a excelente qualidade da matéria-prima. O “cesto de pão” (2,50 euros) com tostas e dois pãezinhos mornos eram triviais.
 
Um caso de trabalho
 
Das sugestões do dia vierem os “filetes de polvo com arroz do mesmo” (15 euros), apresentados ao estilo portuense, com os tentáculos a serem passados numa polme e depois fritos, enquanto os pedacinhos guarneciam o arroz de acompanhamento. O bicharoco estava tenro, mas não era um exemplar de qualidade superior em termos de sabor, o que se tornou mais evidente ao “desaparecer” do palato devido ao pimento que vinha no arroz. Grande nível tinha a “canja de garoupa com amêijoas” (18 euros), com as duas postinhas do peixe a brilharem de sabor e frescura num caldinho limpo e de perfume “acoentrado”. Amêijoas de boa qualidade e calibre, arroz agulha a enriquecer o conjunto e uma cebola inteira a embeber-se de todos aqueles aromas servidos com generosidade num tacho médio. Na “perdiz frita à moda de Serpa” (24,50 euros), foi escrupulosamente servida a ave completa, que estava saborosa, mas infelizmente muito seca. Cortada em pedacinhos, frita em azeite e banha, alhos, louro e um golpe final de vinho branco trouxeram para o prato um molho escuro e saboroso (puxadinho ao sal), à base dos sucos da fritura. Umas óptimas batatas médias, torneadas, e fritas em rodelas serviam mais de guloseima que complemento, pois a guarnição eram umas migas simples e húmidas, que lá amenizavam o salero do molho.
 
A carta de vinhos é igualmente quilométrica (e ainda bem), o que é uma vantagem perante a extensa oferta de comidas. Bons copos e temperaturas correctas, faltando apenas “passos” mais curtos na escalada de preços, que estão acima da especulação, já que a variedade de escolha é assinalável a todos os níveis entre as muitas dezenas de propostas. O serviço é muito atencioso e prestável, podendo, no entanto, ser um pouco mais atento, evitando a dispersão por conversas laterais na sala e entre sala e cozinha, que prejudicam o tempo de reacção às demandas dos clientes. 
 
Sobremesas generosas e de boa recordação na “torta de laranja” (3,50 euros), servida em duas fatias húmidas e ligeiramente compactas. A “encharcada de Mourão” (4 euros) foi servida em rectângulo vistoso e com o excelente detalhe de não estar demasiado doce, sobressaindo à mesma as características conventuais da receita sem ultrapassar o limite de tolerância ao açúcar que o palato comporta e que em nada acrescenta à percepção do sabor. Igualmente recomendável o “quindim de coco” (5 euros) servido à fatia, com uma tonalidade amarela suave, textura enqueijada e boa intensidade do coco salpicado em flocos no topo.
 
Este Solar dos Nunes é um caso de trabalho e uma casa de produto. O trabalho vê-se na extensa lista que certamente obrigará a uma grande ginástica na cozinha, mas também na capacidade de reconverter a clientela que, além de homens de negócios levados pela devoção, visto Alcântara ser uma zona residencial, cativa igualmente turistas, sobretudo brasileiros, que se vão afeiçoando e fidelizando ao local. A qualidade dos produtos é acima da média (não obstante o polvo), e incido neles porque é lá que reside parte do sucesso deste “solar”. As instalações são agradáveis e compostas, com os típicos azulejos a meia altura e alguma decoração castiça a dividir-se com fotos de celebridades e recortes de imprensa, mas, apesar do nome, as salas têm pouco de solarengas, com as cadeiras de pau de cepa rija a fazerem-se sentir ao fim de algum tempo à mesa e o espaço a ser acanhado nalgumas zonas. Por incrível que pareça, o local onde provavelmente o lado mais pomposo do espaço está visível é nos lavabos, com uma prática e simpática selecção de cosmética e higiene pessoal a estar disponível para os clientes. Entre diversos produtos de uso pessoal, os cavalheiros podem usufruir de apetrechos para os sapatos e as senhoras para as unhas. 
 
No prato, a comida do Solar dos Nunes é reconfortante, feita de sabores adquiridos e tem o lado “soalheiro” de nos trazer o sol da nossa gastronomia para a mesa. O reverso é o facto de a conta ser “quente” para os dias que correm, pois apesar de ter cozinha tradicional qualificada e ambiente descontraído, este “solar popular” não está de facto ao alcance de toda a gente.
Nome
Solar dos Nunes
Local
Lisboa, Alcântara, Rua dos Lusíadas, 68/72
Telefone
213647359
Horarios
Segunda a Sábado das 11:00 às 16:00 e das 19:00 às 02:00
Website
http://www.solardosnunes.com/
Preço
30€
Cozinha
Trad. Portuguesa
Espaço para fumadores
Sim
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