Fugas - restaurantes e bares

  • DR. O tempo passa e o Tavares continua
    DR. O tempo passa e o Tavares continua "rico"
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  • A fachada no início do século XX
    A fachada no início do século XX DR
  • Aspecto da sala do 1º piso nos anos de 1970
    Aspecto da sala do 1º piso nos anos de 1970 DR
  • Decoração anos 80
    Decoração anos 80 DR
  • O aspecto da sala nos dias de hoje
    O aspecto da sala nos dias de hoje Sara Matos/Arquivo
  • Sara Matos/arquivo
  • Fernando Lopes (à direita) vendeu o Tavares em 2002 a José Pereira dos Santos
    Fernando Lopes (à direita) vendeu o Tavares em 2002 a José Pereira dos Santos Pedro Cunha
  • O chef José Avillez conquistou uma estrela Michelin para o Tavares. Saiu no início de 2011
    O chef José Avillez conquistou uma estrela Michelin para o Tavares. Saiu no início de 2011 Helder Olino/Arquivo

As vidas que o Tavares viveu

Por Fortunato da Câmara ,

Abriu em finais do século XVIII e chegou até aos dias de hoje a ostentar o título de restaurante mais antigo de Portugal. A grande viragem aconteceu há 150 anos, quando um velho botequim se transformou no luxuoso Restaurant - Café Tavares, um ícone que se tem superado nas adversidades.

"O Tavares foi o meu primeiro filho." A afirmação emotiva é de Fernando Lopes, antigo proprietário do histórico restaurante lisboeta. Ao recordar os tempos em que esteve à frente do espaço, acrescenta, com um misto de orgulho e saudade: "Fui rei no Tavares, e reinei porque me levantava às cinco da manhã para ir à praça fazer as compras."

A forma directa como Fernando Lopes ilustra a sua ligação ao restaurante reflecte a história de uma vida de trabalho e dedicação. "Fugi de casa dos meus pais e vim para Lisboa escondido numa camioneta de pipas de vinho." A decisão de partir de Valença do Minho com apenas 10 anos era guiada pelo desejo de ser alguém. Na capital deram-lhe trabalho numa carvoaria. "Trabalhava de dia e estudava à noite. Chegava a ir para a cama às seis da manhã", refere, ao relembrar os primeiros anos em Lisboa. Em finais da década de 40 conseguiu entrar para o restaurante Horcher como ajudante de cozinha. Nos meses de Verão o Horcher fechava. Fernando Lopes não se permitia ter férias, por isso aproveitava a pausa para fazer alguns extras no Tavares. Foram estes os seus primeiros contactos com o restaurante mais luxuoso da cidade.

A aura de opulência do Tavares remonta a 1861, quando Vicente Marques Caldeira e o seu filho Manuel compraram um velho botequim de ambiente taciturno - que já existia desde 1784 no local onde hoje o restaurante se encontra -, para o transformar no lugar mais chique de Lisboa. O autor desta profunda remodelação permanece incógnito e nem uma pesquisa abrangente - até a cemitérios fomos - permitiu chegar a uma conclusão (ver caixa).

O interior foi totalmente renovado e a cozinha preparada para servir refeições. Foi retirado o velho quiosque que existia no meio da sala e alterada a actividade comercial, passando a chamar-se "Café - Restaurant, Tavares". A ideia de manter o apelido de um antigo proprietário no nome talvez fosse uma estratégia para cativar clientes. A sociedade alfacinha conhecia bem o botequim dos irmãos Manuel e António Tavares, já que durante a conturbada gerência iniciada por eles em 1823 o local foi considerado suspeito de apoiar os opositores ao rei D. Miguel.

No novo restaurante Tavares era agora possível saborear lautos repastos numa atmosfera elegante e sofisticada. Nos primeiros dias o esplendoroso salão esteve vazio. "O luxo do estabelecimento, em vez de atrair a clientela, dir-se-ia que a afastava", refere Luís de Oliveira Guimarães na edição nº39 do jornal O Cronista, de 1956. A decoração intimidava aqueles que davam apenas uma espreitadela, mas a aposta de Caldeira em 1861 ia além do ambiente distinto. A excelência da cozinha e a completa garrafeira começaram aos poucos a atrair para o Tavares figuras relevantes da época.

Por esta altura, o bife servido no Marrare das Sete Portas da Rua de Santa Justa já tinha créditos firmados entre os clientes mais exigentes. No entanto, a prosa de Eça de Queiroz também destaca o "bife excelente", a perdiz fria e o doce de ananás como pratos emblemáticos da ementa do Tavares, que o autor imortalizou em 1888 no romance Os Maias, o mesmo ano em que morreu Vicente Caldeira. O seu filho Manuel assume a gestão do restaurante e concluiu a construção (iniciada pelo pai) de uma clarabóia de vidro no pátio do primeiro andar e a divisão do espaço restante em gabinetes.

As alterações tinham como objectivo trazer mais conforto às diversas personalidades ilustres que já frequentavam o espaço, como Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro. Em finais do século XIX ir ao Tavares era um must, um acontecimento por si só. Eram populares os jantares de mesa redonda frequentados por intelectuais da época em que havia um menu a preço fixo, mas também era possível fazer refeições opulentas escolhendo à lista.

Manuel Caldeira quis elevar ainda mais os padrões do estabelecimento quando, em 1903, entregou a Hermógenes dos Reis a renovação que colocou o Tavares no lote dos lugares mais exclusivos da Europa. A profusão de talha dourada com motivos rococó sobressaía entre os candeeiros em aplique. A estatuária pontuava ao longo da sala que combinava com elegância os estilos Belle Époque e Art Nouveau. No exterior, a entrada em vitraux de marquise sublinhava o lado sofisticado. Sobre a porta, o alpendre com vitrais ostentava ao centro o brasão da Casa Real em relevo. No primeiro andar os cabinets foram decorados com frescos no tecto, mantendo-se reservados de olhares indiscretos. A propósito destes gabinetes privados, Fernando Lopes recorda: "Por vezes eram mal frequentados e apareciam senhoras à procura dos maridos e nós justificávamo-nos, dizendo-lhes que se calhar tinham-nos visto entrar na porta ao lado, que também dava acesso ao primeiro andar e a outros apartamentos do prédio." E acrescenta que foram episódios caricatos como este que levaram ao fim dos gabinetes, em 1964.

O resultado desta remodelação no início do século XX marcou o início de uma época ainda mais dourada sob a égide de Manuel Caldeira. Políticos, aristocratas e burgueses eram vistos com frequência à mesa do Tavares a degustarem o melhor da cozinha francesa clássica. Sidónio Pais terá almoçado ali a 4 de Dezembro de 1917, na véspera do golpe de Estado que liderou e o levaria à Presidência da República, conforme relata Mário Costa em O Chiado Pitoresco e Elegante. Com a morte de Manuel Caldeira, em 1923, chega ao fim a era Caldeira no Tavares.

Caviar e pescada

O então gerente Miguel Villan Monrroy compra o restaurante em sociedade com o filho José Marques. Apesar de ter novos responsáveis, o prestigiado nome de Manuel Caldeira como proprietário foi mantido nas placas de bronze que ladeavam a fachada e também nas ementas. Num cardápio de 1937 (Arquivo Municipal de Lisboa), a iguaria mais cara eram as "Truffes au Champagne", que custavam 30$00 e figuravam na secção de legumes e saladas. Nos hors d"oeuvres, a escolha ia desde "caviar" a 24$00 até "atum português" em óleo a 4$00. Nas spécialités de la maisonencontramos um "frango sauté à Tavares" a custar mais 5$00 que o "linguado Grand Duc", que levava trufas, cujo preço se ficava pelos 15$00, abaixo dos 18$00 que valiam os champignons sautés. Uma última curiosidade vai para os queijos, onde uma porção de flamengo valia 3$00 e o Serra apenas 2$50.

Em 1940 o Tavares abre falência. O Diário de Notícias de 8 de Outubro noticiava que o recheio tinha sido leiloado em hasta pública. Entre outros desbaratos, o jornal destacava que um lote de 106 pequenas colheres da Christofle tinha sido arrematado por 150$00. Nos anos seguintes o restaurante foi gerido por algumas sociedades de forma titubeante até 1956, quando uma nova gerência evitou que o espaço mudasse de ramo comercial, conforme é referido em O Chiado Pitoresco e Elegante. O livro conta ainda que no jantar de reabertura, a 14 de Janeiro, foram servidos "robalos à irmãos Tavares" e "franguinhos à Manuel Caldeira", aos ilustres convidados dessa noite. Entre os convivas, o jornal O Cronista (n.º39) refere a presença do Almirante Gago Coutinho que, apesar dos 86 anos de idade, "se manteve até ao final, três horas da madrugada, sempre bem-disposto".

Com a gerência iniciada em 1959, o restaurante entrou em velocidade de cruzeiro. Foi nesse ano que Fernando Lopes entrou como ajudante de empregado de mesa, mantendo-se na casa durante 43 anos. Chegou depois a escanção e mais tarde tornou-se proprietário, ao comprar sucessivamente as quotas dos outros cinco sócios. O estilo definido por Fernando Lopes era a junção da cozinha francesa com o serviço de sala à russa, visível em pratos como os "tornedós à Rossini" ou os flamejantes "crepes Suzette", havendo também espaço para as "mãozinhas de vitela com ervilhas" ou a "dobrada à Tavares" que figuravam como pratos do dia.

Fernando Lopes recorda o actor Ribeirinho que, mesmo já de idade avançada, ia ao Tavares "todas as semanas comer a sua latinha de caviar" e lembra-se com precisão do dia de formatura de Freitas do Amaral, que "foi lá comemorar com os pais e comeu pescada cozida com maionese". Estes são apenas alguns dos muitos clientes que serviu. Após a revolução de 25 de Abril, fechou o restaurante por alguns meses, e abriu um espaço com refeições mais económicas na sala do primeiro andar para evitar a falência durante o PREC. A sala enchia todos os dias com Mário Soares e o grupo que o acompanhava, enquanto a de baixo se mantinha fechada, contrariando o desejo de clientes assíduos como Francisco Sá-Carneiro.

"Ele dizia-me que queria almoçar no Tavares mas tinha que entrar pela porta da frente. E eu dizia-lhe que era melhor não ir porque ia ser enxovalhado. É que havia pessoas que ficavam ali a ver quem entrava para lhes chamarem fascistas." A amizade que manteve com Sá-Carneiro traz-lhe a memória dolorosa do dia 4 de Dezembro de 1980, quando o então primeiro-ministro almoçou tranquilamente no primeiro andar a perdiz estufada que tanto apreciava, antes de embarcar para o Porto no fatídico voo que se despenhou em Camarate.

Durante a sua gerência, o Tavares recebeu personalidades de relevo mundial de diversos quadrantes da sociedade. Foi agraciado com distinções nacionais e internacionais, entre elas a Medalha de Ouro da Cidade de Lisboa em 1984, quando se assinalaram 200 anos de existência. As histórias são muitas para quem viveu quase um terço da época de ouro do Tavares, mas, aos 80 anos, Fernando Lopes mantém-se activo e promete contar algumas no livro de memórias que está a preparar sobre a sua vida.

As estrelas

Foi, porém, a necessidade de ter uma rotina mais tranquila que o levou a vender o restaurante em 2002 a um advogado de Leiria. José Pereira dos Santos avançou para a compra porque sonhava ter em Portugal um restaurante com nível de cozinha dos "estrelados" do guia Michelin que admirava lá fora. Confessa que foi uma decisão apaixonada, pois não era cliente do restaurante: "Quando entrei a primeira vez no Tavares foi para o comprar", relembra, com um sorriso. Foi um amigo que lhe indicou o negócio, sabendo que ele era um gastrónomo viajado. Depois de obras profundas, durante as quais foi criado no primeiro andar um salão de chá inspirado na pastelaria parisiense Ladurée, o espaço reabriu em 2004. A ambição declarada era obter as cobiçadas estrelas do guia vermelho.

O restaurante sempre tinha sido gerido com os proprietários presentes, não ficando na história um registo forte dos diversos cozinheiros que por ali passaram. Nesta nova vida, o Tavares tinha um director de restaurante e a figura do chef assumiu pela primeira vez um papel de destaque. A contratação do reputado Joaquim Figueiredo não chegou a ter impacto, com o chef português a sair poucos meses depois, abandonando a carreira de cozinheiro por motivos pessoais. Mais tarde, a pastelaria do piso superior também encerrou.

A aposta forte que se seguiu foi em Philippe Pedeunier, que obteve do guia francês a indicação do restaurante para uma possível estrela. O chef francês saiu sem recolher os frutos da promessa de estrela. Entretanto, começaram a acumular-se dívidas decorrentes das obras e do investimento necessário para alcançar o prestígio ambicionado. Pereira dos Santos assume a direcção do restaurante numa tentativa de fazer uma gestão mais próxima. Quando recorda as três deslocações semanais que fazia a Lisboa, reconhece com uma mágoa visível no rosto: "Foi um erro de avaliação meu, pensar que podia gerir o negócio à distância." Na curta experiência que teve como maître do seu próprio restaurante lembra-se de um episódio em que um cliente estrangeiro recusou um vinho. "Foi-lhe servido um bom vinho, que não estava estragado, mas o senhor disse que queria uma coisa muito melhor. Fui buscar um dos melhores vinhos que havia na carta. Ele bebeu com os amigos duas ou três garrafas, a 200€ ou 250€ cada garrafa, e no fim agradeceu-me muito a sugestão do vinho e deu-me um cartão. Era o senhor Hermés [Jean-Louis Dumas] que tinha vindo à sua loja do Chiado."

O cansaço por ter que acumular a gestão com a actividade de advogado em Leiria atingiu o ponto limite em 2006. "Disse para a minha mulher: ou acaba o Tavares ou acabo eu." Passou a gerência para a empresa J. R. Costa, que decidiu contratar o chef José Avillez. A nova proposta de cozinha era influenciada pelas técnicas da gastronomia molecular, um ramo científico da química alimentar que estuda a composição de cada alimento e as reacções que ocorrem durante a confecção. Foi assim que surgiram pratos como "Cascais à beira-mar", "Na horta da galinha de ovos de ouro" ou "Miragem de ostra petrificada no deserto", e que permitiram alcançar a ambicionada estrela no guia vermelho de 2010.

No entanto, a conquista parece não ter sido suficiente para manter o rumo desejado. No princípio de 2011, o jovem cozinheiro anunciava a sua saída devido a "divergências insanáveis com a administração do restaurante", segundo o comunicado divulgado pelo próprio. Em Março, entrou uma nova equipa de cozinha, liderada por Aimé Barroyer, numa altura em que o espectro da falência voltou a pairar sobre o restaurante.

À imagem do trabalho que tem desenvolvido na última década em Lisboa, o chef francês aposta numa carta baseada nos produtos portugueses aplicados na abordagem pessoal que tem da nossa cozinha tradicional, como é o caso dos pratos "Bonito dos Açores, pé de burro, milhos e vilão" ou "Leitoa de Monchique, cabeça, pernas e pezinhos", ou ainda de clássicos como a "Perdiz vermelha à Moda do Convento de Alcântara". O estilo de cozinha mudou, mas nas recomendações para 2012 o guia Michelin manteve a estrela conquistada há dois anos.

No ano em que atinge o 150.º aniversário como restaurante de luxo, o Tavares parece estar a viver mais uma das suas aparentemente inesgotáveis vidas. A turbulência que tem acompanhado este percurso de século e meio de elegância e requinte parece ter o condão de transformar episódios negativos em momentos marcantes que acabam por sublinhar a sua importância e reforçar-lhe o estatuto.

 

Quem foi o autor da luxuosa decoração de 1861?

A ficha do IGESPAR (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico) onde consta a classificação do Tavares como imóvel de "Interesse Municipal" indica que Vicente Caldeira (1861) entregou o projecto a Hermógenes dos Reis, figura de quem se sabe muito pouco para tão notável obra. A informação existente é escassa e está dispersa por vários arquivos. Sem saber a data de nascimento, foi preciso recorrer a uma solução mais incomum. Tentar encontrar o registo de óbito nos cemitérios do Alto de São João e dos Prazeres, os mais antigos de Lisboa.

A chave do enigma estava no cemitério dos Prazeres, onde figura o óbito de Hermógenes Júlio Quadrio dos Reis a 28 de Novembro de 1918, solteiro com 55 anos de idade. O registo aponta 1863 como ano de nascimento, ou seja, após a transformação do restaurante, em 1861.

Hermógenes dos Reis fez carreira no Ministério das Obras Públicas e em 1884 acumulou a função de desenhador com a frequência da Real Academia de Belas Artes. Em 1897 regressa de uma temporada em Paris e retoma a actividade. O estilo Belle Époque que imperava na capital francesa e a corrente Art Nouveau certamente o inspiraram na decoração que projectou para o Tavares em 1903, ao aceitar o desafio de Manuel Caldeira.

Em relação a 1861, e segundo refere Gustavo de Matos Sequeira em O Carmo e a Trindade, Vicente Caldeira terá encomendado lustres imponentes, moldes para fazer relevos em gesso e espelhos venezianos para ornamentar o salão. Analisando esse período das artes decorativas, os nomes mais sonantes que surgem são os de Giuseppe Luigi Cinatti e Achilles Rambois, que foram responsáveis por obras relevantes do romantismo português. A dupla italiana brilhava com as imponentes cenografias que projectava para as óperas do São Carlos e por isso era também muito solicitada pelas elites da época para recriar ambientes esplendorosos em construções palacianas. Não se encontrando registos que indiquem quem foi o decorador do Tavares na transformação executada há 150 anos, é plausível aventar a hipótese de Vicente Caldeira ter sido aconselhado por Cinatti ou Rambois, uma vez que naquela época quem queria causar impacto na decoração de um espaço, e tinha dinheiro, era a eles que recorria. Terão sido estes dois artistas os autores. A incógnita subsiste.

Nome
Tavares
Local
Lisboa, Encarnação, Rua da Misericórdia, 37
Telefone
213421112
Horarios
Terça a Sábado das 12:30 às 14:30 e das 19:30 às 23:00
Website
http://www.restaurantetavares.pt
Preço
70€
Cozinha
Autor
Espaço para fumadores
Não
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