Fugas - restaurantes e bares

Bacalhau à Gomes Sá - Restaurante Adega Tia Matilde

Bacalhau à Gomes Sá - Restaurante Adega Tia Matilde Nuno Santos

À mesa do senhor Emílio

Por David Lopes Ramos ,

A Adega da Tia Matilde é um dos mais antigos e justamente famosos restaurantes de Lisboa. O segredo do êxito está, claro, na ementa, mas também nos profissionais que nele trabalham e respectivas instalações. No caso da Adega da Tia Matilde há algo mais: é o sr. Emílio, o dono da casa, onde começou a trabalhar há 70 anos.
Uma terra, uma cidade, não se faz sem as casas e as pessoas que nelas vivem. Os restaurantes dão um contributo decisivo na construção do rosto de uma cidade. Lisboa tem dentro de si essas casas e a Adega da Tia Matilde é um desses restaurantes. Sem a sua existência e o contributo que dá para a satisfação diária de alguns dos habitantes ou visitantes da cidade, Lisboa seria uma terra mais desinteressante. O dia a dia, com o seu ritmo triturador, faz-nos esquecer mais vezes do que seria desejável estas realidades que, embora comezinhas, são importantes, por se relacionarem com a felicidade das pessoas. Sabemos, e é bom que saibamos, o nome das grandes obras e dos grandes homens. Mas há os outros, os que, no dia a dia, fazem do seu ganha pão momentos de partilha de felicidade com os outros. O sr. Emílio, proprietário da Adega Tia Matilde, é um desses. E já o faz há 70 anos! Na taberna dos pais, serviu operários. Agora, no seu restaurante, serve burgueses bem postos e bem instalados na vida. Uns e outros, porém, como ele diz, serviu com "dignidade, respeito e sensibilidade".

Vale a pena olhar para a ementa da Adega da Tia Matilde, porque é nela que se acumulam as razões do êxito da casa. Ao contrário do que se poderia pensar, um habitual frequentador de restaurantes raramente gosta que o surpreendam com propostas de novos cozinhados. O seu arsenal de conhecimentos na matéria é diminuto. Mas, se não gosta de surpresas, admite muito menos que o sirvam de forma descuidada e lhe coloquem no prato cozinhados pouco apurados ou confeccionados com produtos de baixa qualidade.

Os frequentadores da Tia Matilde sabem que nenhum destes percalços lhes sucederá. E, em caso de acidente acidental, tudo será feito para que o mal seja reparado. O bom nome de uma casa também passa por aqui. O que domina, porém, neste antigo restaurante lisboeta é uma cozinha de mulheres, trabalhada com rigor e carinho, muito bem apaladada e com pormenores que nos remetem para os cozinhados de nossas casas. A empatia é imediata.

Atentem na ementa do almoço do passado dia 8 de Janeiro, uma quinta-feira, dia em que muitos restaurantes de Lisboa não dispensam o cozido à portuguesa. Na Adega da Tia Matilde não o servem. Em alternativa há arroz de frango à Tia Matilde (cabidela) (11 euros), coelho bravo à caçador (15 euros), perdiz estufada (19 euros), cabrito no forno (cordeiro) (14 euros), pato corado com arroz (13 euros), coelho no forno (2 pessoas) (22 euros), carne de porco à alentejana (14 euros) e lombo de porco no forno (12 euros); os dois últimos integram a ementa fixa. Neste pequeno núcleo encontramos algumas das técnicas fundamentais do cozinhar português: guisado, estufado, assado no forno e confecção do arroz. Também alguns dos nossos pratos mais emblemáticos. E pelo menos um cozinhado, o coelho manso assado no forno, que raramente encontramos em restaurante, mas que na casa de alguns de nós é ou foi prato dos almoços de domingo.

Os mesmos comentários se podem estender aos pratos de peixe desse dia: caldeirada à Tia Matilde (21 euros), lulas recheadas com puré de batata (17 euros), sopa rica de peixes (2 pessoas) (22,5 euros), linguado frito com arroz de grelos (22,50 euros), rodovalho frito com arroz de grelos (20,50 euros), pargo cozido (21 euros); os três últimos são parte da ementa fixa. Caldeirada à Tia Matilde porquê? Pelos peixes que a integram, apenas quatro, não por acaso estes quatro: eiroses (enguias de tamanho médio/grande), safio (só postas abertas e praticamente sem espinhas), tamboril (que não tem espinhas, apenas cartilagens) e choco (este é que não tem mesmo espinhas). Além dos peixes, cozinhados no ponto e não espapaçados, umas rodelas finas de batatas, umas fatias de pão torrado, tudo embebido num caldo delicioso (absolutamente imperdível, que deixa as massadas, agora tão na moda, num chinelo), em que também entram cebola às rodelas, falhas de alho, salsa, tomate maduro (pouco), pimentos (verdes e vermelhos) em quantidade moderada e um nadinha de picante.

Compõem a ementa fixa 14 entradas, 15 pratos de peixe (alguns são desdobramento do mesmo peixe, cozido ou grelhado ou frito ou grelhado) e cinco pratos de carne. Sopas são geralmente duas. Queijos há Serra, Serpa e Azeitão. Frutas há 11 propostas e 10 de doces. O lote actual do café é muito bom: aromático, com boa acidez, achocolatado, muito saboroso. A carta de vinhos está bem e é notória a preocupação de actualização. Destacam-se, nas entradas, pela qualidade do produto e respectiva confecção, o camarão tigre grelhado (75 euros o quilo) e as amêijoas à Bulhão Pato ou ao natural (21 euros) e, por quase ninguém a oferecer, a mioleira de cabrito com ovos (8 euros). Quem for adepto do arroz de marisco, entre ele a lagosta, deve experimentar a receita da Tia Matilde. A rubrica "sugestões" muda todos os dias: é lá que encontramos, no tempo dela, que está a chegar, a lampreia (uma digna e deliciosa lampreia), o sável, o bacalhau à Isabel e outros, bem como as iscas (daquelas bem temperadas) com elas, as feijoadas, entre elas a dobrada, só para falar destes. Nas frutas destaco um delicioso marmelo assado, que, de novo, nos remete para os almoços familiares dos fins-de-semana. Este clima encontramo-lo no dia a dia da Adega da Tia Matilde, o que é uma das suas qualidades mais apreciáveis.

Sr. Emílio, 70 Anos a Servir o Público

Fez 70 anos, no dia 27 de Janeiro, que o sr. Emílio começou a trabalhar no restaurante Adega Tia Matilde, na Rua dr. Álvaro de Castro, onde ainda permanece, agora com entrada pela Rua da Beneficência, 77, em Lisboa. São 70 anos a servir o público, primeiro ao balcão da taberna aberta pelos pais, a 1 de Maio de 1926, na Rua Filipe da Mata, que mais tarde se tornou num dos mais afamados e afreguesados restaurantes lisboetas que servem "cozinha tradicional portuguesa".

Informa o sr. Emílio que a casa "trabalhou durante muito tempo como casa de pasto, taberna de bairro. Servia refeições para o pessoal que trabalhava aqui no cais de caminho de ferro na descarga da batata, do carvão e de outros produtos. À noite, esses descarregadores, mas também calceteiros, cauteleiros e outros jogavam às cartas e à laranjinha". A casa era então conhecida como "a taberna do Emílio", nome do pai, que o actual proprietário herdou. Chama-se Emílio Augusto Andrade Júnior e nasceu em Lisboa, no dia 2 de Abril de 1921, no Hospital de São José.

Com a morte da mãe, que se chamava Matilde, em Setembro de 1946, o sr. Emílio e sua mulher, Isabel, tomaram conta da casa e mudaram-lhe o nome para Adega da Tia Matilde, embora continuando como taberna, casa de pasto e jogos. "A remodelação foi lenta. Só em 1958 acabo com a taberna e os jogos", recorda o sr. Emílio. O espaço cresceu e ficaram só "os comes e bebes". Comprou mais espaço há 28 anos, o restaurante foi crescendo, mas a qualidade só "abanou um bocadinho", na expressão do sr. Emílio, com a morte de Isabel a 19 de Dezembro de 1993. Nessa altura, por razões de saúde, Isabel já não cozinhava, mas inspirava as mulheres da cozinha, a maioria das quais continua a trabalhar no restaurante.

O sr. Emílio, ao evocar esses tempos, diz que que foi preciso "um bocado de paciência. Continuavam, como ainda hoje, as mulheres que cozinhavam como ela. Mas, às vezes, havia um cliente que comentava: "Isto já não é igual". Ficava moído". E conclui: "A coisa tem sido difícil".

Agora, porém, a Adega da Tia Matilde vive em estado de graça. Casa muito bem posta, as mesas são amplas e bem atoalhadas e os guardanapos são de qualidade e tamanho pouco comuns. Tem uma clientela numerosa e variada, distinguindo-se entre os mais assíduos gente ligada ao mundo do futebol. Todos sabem que o sr. Emílio é um benfiquista de todos os costados. Convidado para ser director do Benfica, nunca aceitou, bem como sempre recusou aparecer nas fotografias, apesar de ter acompanhado a equipa de futebol em várias digressões, com destaque para uma que o fez estar ausente um mês. "Nunca apareci, nem quero", sublinha.

A poucos meses de completar 83 anos, a sua energia e simpatia continuam a marcar o dia a dia da Adega da Tia Matilde. A sua equipa de sala, experiente e competente (quase todos têm mais de 10 e 15 anos de casa), conta todos os dias com a sua presença discreta e bem educada. Os clientes também, mesmo os mais recentes. Há 70 anos, o sr. Emílio começou a servir o público. Permanece no seu posto, ao fim deste tempo todo. Com energia e vontade de assim se manter por muito mais tempo. Oxalá!

Não será altura de a sua cidade, Lisboa - "fiz a casa na minha terra e, embora não tenha feito o mundo, fiz uma aldeia e sinto-me muito bem dentro dela", filosofa -, lhe reconhecer publicamente o mérito?

Nome
Adega da Tia Matilde
Local
Lisboa, Nossa Senhora de Fátima, Rua da Beneficência, 77
Telefone
217972172
Horarios
Segunda a Sábado das 12:00 às 00:00
Website
http://www.adegatiamatilde.com
Preço
25€
Cozinha
Trad. Portuguesa
Espaço para fumadores
Sim
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