Fugas - viagens

Edimburgo na cartola do mágico

Por Luís Maio

Sylvain Chomet invoca Edimburgo sob um manto de chuva e melancolia. O Mágico passa-se em 1959, mas a Fugas pode assegurar que a cidade é hoje tão ou mais encantadora. A grande diferença é que o centro da capital escocesa se converteu num salão de festas, cheio até mesmo sob condições atmosféricas inverosímeis.

A primeira vez que Sylvain Chomet esteve na capital escocesa foi para a assistir à estreia do seu filme Les Triplettes de Belleville (Belleville Rendez-vous), no Festival de Edimburgo de 2003. Era uma tarde morna de Agosto, uma dessas raras ocasiões em que as condições atmosféricas são para celebrar na Escócia, quando desembarcou do comboio, na estação Waverley, em plena baixa da cidade. O cineasta apaixonou-se de imediato por Edimburgo, coup de foudre que o fez lá rodar o guião que trazia na bagagem: uma história escrita mas nunca filmada por outro realizador francês, o lendário Jacques Tati.

O Film Tati Nº4 converteu-se assim em O Mágico (L'Illusionniste), longa-metragem animada, na maior parte desenhada e colorida à mão, praticamente sem diálogos. É a história de um mágico envelhecido, desses que tiram coelhos da cartola, que se torna num anacronismo por altura de 1959. A decadência do vaudeville em Paris força-o a atravessar a Mancha, apenas para encontrar contratos efémeros em Londres, depois na remota ilha de Iona, nas Hebrides, e finalmente em Edimburgo, onde se desenrola o essencial do enredo. Na ilha, o mágico trava conhecimento com Alice, uma criada de quarto adolescente, que resolve segui-lo até à grande cidade.

O filme é centrado na relação pai-filha que esses personagens adoptam, mergulhando numa atmosfera nostálgica de forte cariz autobiográfico, desde logo ostensivo quando o nome no cartaz do mágico é Tatischeff , apelido verdadeiro de Tati.

Chomet viajou para Edimburgo não apenas na companhia do guião de Tati, mas também da sua própria filha, então com 11 anos de idade, coincidências que terão contribuído para a experiência de magia que viveu na cidade do Norte. O que mais o encantou, tem dito e repetido o realizador francês, foram os céus e sobretudo a luz que encontrou nesses dias de excepção: uma luz em constante devir, provocando a grata sensação de continuar a viajar, mesmo depois de se ter apeado do comboio. O Ilusionista é, portanto, uma declaração de amor de um pai a uma filha, mas também de um cineasta a uma cidade excepcional.

John Meville escreveu no Scotsman: "Nunca a linha do horizonte de Edimburgo pareceu tão bela. Se a cidade não existisse, seria difícil de acreditar que existe uma cidade assim tão bonita. Se quem lá vive não se sentir inspirado a dar um passeio até North Bridge ou Victoria Street depois de ver o filme, então nunca o fará". E Fiachra Gibbons no Guardian: "O Ilusionista é a mais bonita carta de amor alguma vez escrita sobre uma cidade na tela". Em qualquer caso, o filme de Chomet funciona como um excelente veículo promocional para Edimburgo, o género que uma campanha institucional dificilmente poderia pagar.

Epifania urbana

Será a Edimburgo de todos os dias a mesma que tocou o realizador francês? Como é a cidade fora do par de dias quentes anual, ou para além do portfolio de aguarelas produzidas pelos animadores de Chomet? O cinema é uma fábrica de ilusões e um filme chamado O Ilusionista não tem certamente grandes ambições realistas. Mas isso é o que menos importa, quando esta cidade é um daqueles casos flagrantes em que a realidade ultrapassa a fantasia. Edimburgo é uma caixa de surpresas, que não precisa de habilidades ou truques para destilar magia.

Tem muito a ver com o enquadramento paisagístico: desde 1492, a capital escocesa cresceu em torno de um conjunto de vulcões extintos, a pouco distância do estuário do rio Forth, com o Mar do Norte pela frente. O castelo medieval ergue-se na ponta de uma dessas formações vulcânicas (Castle Hill), uma série de monumentos ao estilo grego estão empoleirados noutra (Calton Hill, também conhecido por Acrópole Georgina), um terceiro e mais majestoso conjunto (dominado pelos Penhascos de Salisbury) integra o maior parque natural da cidade.

Não há, em contrapartida, um só arranha-céus a destoar na linha do horizonte. Onde quer que se esteja, no miolo urbano, é seguro divisar colossos de rocha cobertos de verde a espreitar por entre chaminés fumejantes, com veleiros de basalto, flutuando sobre um mar de casas. Em Salisbury a natureza conserva-se em estado selvagem, funcionando como uma espécie de montra em miniatura das paisagens da Escócia, incluindo penhascos, lochs, terrenos alagadiços e até a ruína de uma capela.

Noutras elevações a mancha verde é mais humanizada, mas em todo o lado se fica com a impressão de que a cidade não se impôs, antes encaixou naturalmente na paisagem. A circunstância de ainda hoje ser uma cidade de escala razoável, contando com uma população de menos de meio milhão de habitantes, é outro factor que abona a favor do charme de Edimburgo.

Aninhado entre os vulcões, o centro histórico divide-se em duas grandes parcelas urbanas. A cidade medieval, ou Old Town, é um emaranhado de ruelas apertadas e irregulares, dominadas por um casario alto, compacto e popular, que cobre a ladeira desde o castelo até ao real palácio de Holyrood.

Mesmo em frente fica a New Town, projectada há duzentos anos e assente numa grelha de ruas largas de traçado geométrico, delimitando quarteirões de edifícios desafogados, elegantes e burgueses. Separadas pelo corredor verde de Princes Street Gardens, a cidade antiga e a nova contemplam-se uma a outra a todo o comprimento, degrau a degrau e em cada esquina.

Esse constante jogo de planos e perspectivas é parte integrante da magia de uma cidade que se descobre caminhando a pé, de preferência ao acaso. Agarrar esses instantes de transcendência proporcionados pela flannerie não estará ao alcance de um mágico com problemas demasiado materiais como é o caso Tatischeff. Só no momento da despedida, quando ascende ao penhasco de Arthur's Seat para libertar o coelho da cartola, o ilusionista parece despertar para a beleza da capital escocesa.

Em contrapartida, quem nos vai dando a descobrir Edimburgo é Alice, a miúda cujos olhos serão os de Chomet (ou os da sua filha na mesma idade) a desembarcar na estação de Waverly no quente verão de 2003. Alice acaba por ser o epítome do viajante, ou pelo menos de um certo tipo de viajante que corteja a epifania, que se desloca na cauda do perfume místico que é suposto dimanar de lugares especiais. Alguns acreditam que certas cidades europeias de segunda linha, menos afectadas pelo vírus do crescimento desenfreado, souberam conservar a poesia e o mistério de outros tempos. Edimburgo, mas também Lisboa, Praga ou Budapeste figuram regularmente nesses tops de metafísica urbana.

Charme atemporal

No Film Tati Nº4 o ilusionista viajava com a filha adoptiva para Praga. Mas Chomet não vislumbra na capital checa tanto encanto quanto na escocesa, por isso transferiu a acção para Edimburgo.

O lugar é diferente, mas a época é a mesma, dando lugar a uma meticulosa reconstituição da cidade em 1959. O realizador francês deu-se a preciosismos como o de descortinar o paradeiro dos fabricantes dos autocarros que então circulavam em Edimburgo para saber como eram os seus tectos, frequentemente vistos no filme em plano picado sobre Princes Street. Hoje os corredores de transportes públicos de Princes Street, a principal artéria comercial da New Town, são dominados por autocarros de dois andares, que substituem os que lá circulavam há 50 anos. São como versões estilizadas, porventura de linhas mais elegantes e aerodinâmicas, mas derivadas do mesmo figurino clássico.

Chomet também fez questão de reconstituir a preceito os pitorescos restaurantes de fish & chips, antes comuns na Royal Mile, a espinha dorsal de Old Town. Dizem os de lá que agora é preciso atravessar a ponte sobre o rio Forth para comer uma posta decente de haddock com batatas fritas, de preferência na aldeia piscatória de Anstruther. Na Royal Mile persistem, no entanto, dois fish & chips da velha guarda e o que não falta um pouco por todo o centro da cidade são casas especializadas na mesma receita tradicional, gordurosa e barata.

Os autocarros e os fish & chips são como quase tudo em Edimburgo. Ou seja, a fisionomia urbana mudou, mas não tanto quanto isso tão-pouco muitas vezes, que nem chega a ser digno de menção. Faça-se o exercício de sair em passeio de reconhecimento pelo centro, comparando as aguarelas animadas do filme que retratam a cidade em 1959 com os seus correspondentes actuais. Será certamente mais fácil divisar semelhanças que diferenças, sendo que algumas dessas diferenças são duplicações de mobiliário urbano de outros tempos. Este conservadorismo é, de resto, bem mais pronunciado na cidade escocesa que nas suas congéneres europeias de apelo místico (maior, seguramente, que numa Praga em acelerada transfiguração), contribuindo para acentuar o charme atemporal e muito cinematográfico que o realizador francês tanto aprecia na capital escocesa.

Vibrante e ruidosa

Não quer dizer que Edimburgo seja uma cidade anacrónica, antes pelo contrário. Significa que mudou menos de layout que de demografia e decoração. O centro histórico está bem conservado e mantido, consagrando a dualidade entre a cidade gótica e a cidade vitoriana. Não impede que seja hoje diariamente invadido por magotes de gente, incluindo contingentes de turistas que desfilam para cima e para baixo do quilómetro e meio de Royal Mile, mas também, e principalmente, por uma multidão de residentes que passam os fins-de-semana às compras em Princes Street e, mais tarde, nos restaurantes e bares das paralelas Rose Street (mais sub 30) e George Street (malta mais crescida, mais endinheirada).

Aqui sim, o contraste é abismal: a Edimburgo de O Mágico é uma cidade quase fantasmagórica, onde às vezes parece que não há mais ninguém para além de meia dúzia de personagens melancólicas e taciturnas. Quando pelo contrário a capital escocesa é hoje uma cidade vibrante e ruidosa, onde se vive uma atmosfera festiva, mesmo sob as condições atmosféricas mais adversas. Claro que para manter esse nível de efervescência e ao mesmo tempo dar-se ao luxo de se conservar igual a si própria, Edimburgo teve de se adaptar ao correr dos tempos e fazer concessões ornamentais, digamos assim.

Um excelente exemplo desse espírito de compromisso responde pelo nome de Jenners, os grande armazém de Princes Street, convertidos em casa encantada pela Alice de O Mágico. Inaugurados em finais do século XIX por uma família local, ganharam um novo patrão corporativo e foram remodelados a meio da década passada. Deixaram de ter produtos de fabrico próprio e as coberturas antigas foram removidas para deixar entrar mais luz. Mas as fachadas vitorianas foram magnificamente restauradas -incluindo o conjunto de elegantes Cariátides instaladas na fachada em 1893 e é hoje de novo a grande referência comercial da baixa de Edimburgo, pelo menos no capítulo do luxo clássico.

Do outro lado da rua, na mesma Princes Street, encontra-se o tão ou mais imponente hotel da gare de Waverley, coroado por um relógio no topo de uma torre de 58 metros de altura, muito ao estilo Big Ben. É outro ícone da cidade e uma presença recorrente no filme animado por Chomet. Primeiro chamado North British Hotel e agora Balmoral, o hotel centenário, também de factura vitoriana, foi recentemente renovado, perdendo no processo os seus belíssimos balcões em pedra. Uma perda lamentável, sem dúvida, mas que acaba por ser um mal menor, sobretudo quando tantos grandes hotéis de gare foram demolidos por essa Europa fora. Hoje mesmo entra-se no Balmoral, ocupa-se uma mesa no seu fabuloso salão de chá e isso chega para nos sentirmos transportados para outra época -o tipo de efeito mágico que fez o realizador francês escolher Edimburgo para capital da sua rêverie.

A Fugas viajou a convite do Turismo Britânico

Contexto: De Tati a Chomet

Em Les Triplettes de Belleville havia uma cena em que os personagens, a mãe coxa e o filho ciclista, estão a ver televisão no quarto. Sylvain Chomet achou que seria divertido pô-los a ver Jour de Fête de Jacques Tati. O seu produtor pediu autorização a Sophie Tatischeff, única herdeira legal, e enviou-lhe desenhos do filme em construção.

Sophie gostou tanto que não apenas deu o seu assentimento para a citação de Jour de Fête, como ainda propôs a Chomet realizar o Film Tati Nº4. Tati teria escrito a história do mágico como uma prenda para Sophie, para a compensar do fraco pai que foi para ela, ou aliviar a culpa que sentia por ter passado mais tempo a trabalhar que a ajudá-la a crescer. Entretanto, o realizador estava em Montreal e Sophie em Paris. Ficaram de se encontrar, mas ela morreu em 2001, dois anos antes da estreia das Triplettes em Cannes.

Assegurado o financiamento da distribuidora francesa Pathé, o cineasta mudou-se então com a família para New Brewick, estância balnear a meia hora de comboio da capital escocesa, Durante cinco anos, ia e vinha todos os dias a Edimburgo, onde montou uma produtora por cima de um pub de George Street, uma das ruas mais emblemáticas da New Town.

A produtora, chamada Django Films, tinha grandes ambições, mas perdeu dinheiro com a sua primeira animação (Barbacoa), não conseguiu financiamento da BBC para uma série apresentada como "Os Simpsons Escoceses" e o próprio Chomet foi despedido da realização de A Lenda de Despereaux.

Onde ficar

The Balmoral
1 Princes Street Tel.: +44 1315562414
www.thebalmoralhotel.com

The Caledonian Hilton
Princes Street Tel.: +44 1312228888
www.hilton.co.uk/caledonian

Dois hotéis de gare, cada qual em sua ponta de Princes Street, ambos obras-primas da arquitectura vitoriana celebrada no filme de Chomet. O Balmoral é, porém, o mais célebre, até porque ostenta o relógio da estação, eternamente três minutos adiantado sobre a hora legal, para evitar que os passeiros percam o comboio.

Os duplos em ambos começam nos 200€. Para quem procura alojamento mais económico e pitoresco o que não faltam são b&b em Edimburgo. Uma boa morada: www.cluaran-house-edinburgh.co.uk.

Onde comer

Barony Bar
81-85 Broughton Bar Telefone: : +44 1315582874
Um dos cenários de "O Mágico" e uma verdadeira instituição de Edimburgo. Um pub old school para apreciadores adultos de cerveja e whisky, que também serve fish & chips e pratos tradicionais. O género quanto mais cheio melhor.

@Net: www.visitbritain.pt | www.visitscotland.com

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