Fugas - viagens

Taro Tahiche

Taro Tahiche Luís Maio

Lanzarote: A ilha de César Manrique

Por Luís Maio

É uma ilha com assinatura, onde tudo ou quase tem a chancela de César Manrique. Ele fez campanha pela preservação dos recursos naturais e da arquitectura tradicional, mas também fez questão de imprimir na paisagem as suas fantasias artísticas. A Fugas visitou uma ilha a meio caminho entre o cenário pitoresco e a utopia artística.

Em Lanzarote diz-se que César Manrique (1919-1992) fez tudo menos os vulcões. É uma piada, talvez um pouco maldosa, mas não tão exagerada quanto isso. César deixou a sua marca pessoal nos sítios mais emblemáticos da ilha e, tão ou mais importante que isso, as suas ideias ditaram-lhe o rumo turístico, subtraindo-a à lista de vítima de excessos imobiliários onde se inscrevem as vizinhas Gran Canaria e Tenerife. Não era arquitecto, nem urbanista, mas pintor de profi ssão e talvez resida aí a chave da diferença que imprimiu a Lanzarote.

Foi um pintor de algum sucesso, mas de qualidade discutível, começando por assinar derivados de Picasso e Matisse, antes de se converter num dos expoentes da abstracção em Espanha. Mas, em 1966, depois de dois anos passados nos circuitos artylibertinos de Nova Iorque (com Andy Warhol e companhia), Manrique decidiu retirar-se para a ilha que o viu nascer. Uma ilha de 300 cones vulcânicos, onde chove pouco e raramente, mas na qual tinha acabado de entrar em funcionamento a primeira unidade de dessalinização de água do mar, abrindo caminho à colonização turística.

Uma das grandes virtudes de César foi a de antever e aparar a avalanche turística segundo parâmetros que hoje classificamos de sustentáveis. Algo de semelhante ao que Conceição Silva esboçou em Sesimbra, um par de anos antes, com uma substancial diferença: as ideias do arquitecto português não demoraram a ir para o lixo, ao passo que as do artista canário ganharam eco junto das autoridades da ilha.

Nomeadamente em Pepin Ramirez, então presidente do Cabildo, que deu força de lei a propostas visonárias para a época, como a de proibir placards de anúncios nas estradas e de limitar a construção em altura hoje mesmo há uma só torre de betão na capital Arrecife, que é exemplar único na ilha.

Regressado de vez a Lanzarote, Manrique começou por sair em defesa da arquitectura vernacular. Ele e o arquitecto Luis Ibanez andaram pela ilha toda a fazer levantamento das casas antigas e mesmo a bater de porta em porta, para convencerem os locais a mantê-las em vez de sucumbirem a modernices. Uma tarefa nada fácil, mas graças à qual muitas casas seculares hoje se mantêm de pé, o alumínio é escasso e a maior parte dos povoados veste rigorosamente de branco. Pelo caminho, Manrique delineou uma rede de itinerários cobrindo os principais pólos de interesse turístico da ilha. Ele mesmo se encarregou de preparar os lugares mais emblemáticos para o choque dos visitantes, procurando soluções de compromisso entre a salvaguarda da natureza, a cultura das raízes e as iluminações da modernidade. São esses mesmos os princípios que enformam tudo, ou quase, que vale a pena ser visto em Lanzarote.

Taro de Tahiche Tahiche, 1966-1992
Mais do que um sítio para viver, Taro de Tahiche vale como um manifesto de intervenção na paisagem. O sítio onde Manrique decidiu construir a sua residência é um campo de lava, semelhante a um mar revolto, agreste e empedernido. O piso térreo apresenta-se como um conjunto de molduras modernas, destinadas a valorizar uma paisagem vulcânica clássica. Mas o verdadeiro golpe de génio encontra-se no piso inferior, que aproveita cinco bolhas vulcânicas para compor uma sucessão de cenários de prazer, desenhados à medida das fantasias libertinas da época de resto, não destituídas de semelhanças com os santuários de prazer do tempo dos romanos. Entretanto, Manrique resolveu transformar a casa em museu, reservando a garagem para sediar a fundação cultural que criou em seu nome, também encarregada de gerir o espaço. O centro abriu ao público em Abril de 1992, cerca de seis meses antes do trágico acidente de carro que lhe roubou a vida.

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