As noites, dormiu-as muitas delas a caminheira abrigada por quem tem por missão na vida ajudar os outros: os bombeiros e a Cruz Vermelha. E também nos quartéis dos soldados da paz encontrou o que não queria. "Fiquei parva com a falta de apoio que os voluntários têm de enfrentar - nalguns casos, se querem usar botas resistentes ao fogo ou máscaras ainda têm de as pagar do seu bolso. Não recebem salário e nem sequer estão isentos das taxas moderadoras da saúde. O que é isto?!", indigna-se. "Precisamos de políticos voluntários que façam das tripas coração, como os bombeiros sempre fizeram por toda a gente."
Os touros e os caniçais
E se nas aldeias sem um café onde tomar uma bica que Isabel atravessou deparou com demasiada gente entregue ao seu destino, em várias das fortalezas onde esteve foi a incúria que se lhe apresentou à frente dos olhos. "O estado ruinoso do castelo de Vila Nova de Gaia é deplorável", lamenta. Para chegar ao que resta da fortaleza de Alfeizerão, no concelho de Alcobaça, a astrofísica teve de abrir caminho à catanada, os delgados bastões de caminhada a fingirem de catana. Do monumento reconstruído por Afonso Henriques em meados do século XII para defender esta zona do litoral só chegou até nós um pedaço de muralha, agora escondido na mata. Em Pombal a caminheira encontrou portões cerrados: "Tem uma placa à porta a dizer que está fechado e vi gruas lá dentro", sinal de obras em curso que, por sinal, já deviam ter terminado há bastante tempo.
Por esta altura já não faltava muito a Isabel para chegar ao destino - marcado para dia 25 de Outubro, data em que Afonso Henriques conquistou o castelo de São Jorge. A água é que começava a tolher-lhe os passos. "Quando cheguei a Atouguia da Baleia chovia que se fartava", recorda. Foi aqui, segundo reza a história, que aportou a frota de cruzados que ajudou o primeiro rei de Portugal a tomar Lisboa. "O que resta do castelo de Atouguia foi vendido a um particular que ali fez um turismo rural. Eu nem sabia que se podiam comprar castelos!"
Mas havia ainda que esperar pela chegada a Santarém para se espantar mais ainda. À falta de melhor alojamento pernoitou na antiga Escola de Cavalaria. Não estava à espera de semelhante cenário de degradação: "São 20 hectares de terreno com pavilhões entregues ao vento, num estado de total abandono. Quando o exército dali saiu foram roubados quilómetros e quilómetros de cabos da instalação eléctrica, e agora ninguém tem dinheiro para recuperar o recinto. É inadmissível", observa, chamando a atenção para a colecção de enormes painéis de azulejo que ainda subsistem na velha escola, retratando velhas batalhas. Foi daqui que partiu, na madrugada do 25 de Abril, uma coluna de blindados comandada pelo capitão Salgueiro Maia para fazer a revolução. Para o local está projectada a instalação de uma Fundação da Liberdade e de vários tribunais.
À saída da cidade, um susto dos grandes: meteu-se por uma ponte no Vale de Santarém sem espaço para os peões passarem e acabou pendurada com a mochila sobre os caniçais da lezíria, agarrada à ponte, para resistir ao cruzamento de dois grandes camiões. Foi quase tão mau como na caminhada dos 80 dias, daquela vez em que foi obrigada a ficar duas horas e meia em cima de uma árvore na zona do Tejo Internacional, em Monforte da Beira, à espera que os touros bravos que a perseguiam desistissem e se fossem embora. Deixou para trás mochila e todos os pertences para escapar aos animais enfurecidos.