Fugas - viagens

Continuação: página 2 de 4

Manaus: Uma cidade em busca da harmonia com a natureza

Teatro Amazonas, o ícone
O Largo de São Sebastião é, talvez, o local mais bonito do centro de Manaus. Consegue perceber-se como era a cidade nos tempos áureos. A praça está bem arranjada, com a calçada portuguesa no sítio, as árvores são frondosas, os bancos de madeira dão uma sombra preciosa. Os prédios em volta estão quase todos pintados de fresco. São restaurantes, gelatarias, hotéis, cafés. E, acima de todos, na beleza, na altura e no destaque, está o imponente Teatro Amazonas, um edifício improvável numa cidade à entrada da selva.

“Quando eu era criança, morava a 100 metros do teatro. A minha irmã começou a estudar piano aos cinco anos e, aos 10, deu um recital no teatro. Eu tinha seis anos. Fiquei deslumbrado com as pinturas da sala principal e do salão nobre”, diz à Fugas Milton Hatoum, que escreveu o conto A Ninfa do Teatro Amazonas, que tem como cenário o principal ícone de Manaus.

O teatro foi construído no final do século XIX, na época áurea da borracha. O então governador Eduardo Ribeiro foi o ideólogo e executor de um projecto que marcou para sempre a cidade. Por fora, é um edifício imponente, também graças à estranha cúpula verde e amarela (tem 36 mil telhas importadas da Europa) que Eduardo Ribeiro acrescentou ao projecto original, desenhado por um gabinete de arquitectura de Lisboa. Mas é lá dentro que o teatro revela todo o seu esplendor. Os lustres franceses, as pinturas do tecto ilustrando a dança, tragédia, ópera e música, as máscaras homenageando compositores e dramaturgos, entre eles Gil Vicente, as cadeiras de madeira, os mármores no hall de entrada, os espelhos no salão nobre a fazerem lembrar Versalhes, tudo se conjuga para transformar o teatro “numa obra de arte”, como diz Robério Braga, que arrisca que Manaus “é a única cidade do mundo cujo símbolo é um teatro”.

É possível visitar o teatro de segunda a sábado (e durante o Mundial também ao domingo). A visita é curta mas serve para saber um pouco da história deste projecto, construído à base de materiais vindos da Europa. Quando a Fugas fez uma visita guiada, encontrou o maestro Marcelo de Jesus. “O Teatro Amazonas é o coração de Manaus. É para onde todo o mundo vem, o que todo o mundo quer visitar”, resumiu. Além da visita, é inesquecível assistir a um espectáculo nesta sala. Não só pela beleza actual, mas também porque é impossível não imaginar o que era este espaço há 100 anos, sem nada em volta, com senhoras de vestido longo e homens trajados de gala para assistir à ópera no meio da Amazónia.

Saindo do teatro, volta-se à praça São Sebastião, outra das memórias fortes de Milton Hatoum. “Ia quase todos os dias à praça São Sebastião, esse bela praça de desenho italiano, cujo piso é revestido de pedras portuguesas. As ondas pretas e brancas inspiraram o paisagista Burle Marx no projecto dos jardins do Aterro do Flamengo, no Rio”, conta o escritor, deixando-se levar pela sua formação em arquitectura. “Os sinos da igreja de São Sebastião ainda ecoam na minha memória. Às vezes, em São Paulo, acordo com as badaladas dos sinos e recordo proustianamente cenas da infância”, acrescenta Milton, que usou esta praça, e o monumento à abertura dos portos, como cenário do início do seu romance Cinzas do Norte: “Antes de conviver com Mundo no ginásio Pedro II, eu o vi uma vez no centro da praça São Sebastião: magricelo, cabeça quase raspada, sentado nas pedras que desenham ondas pretas e brancas. Ao lado de uma moça, ele mirava a nau de bronze do continente Europa; olhava o barco do monumento e desenhava com uma cara de espanto, mordendo os lábios e movendo a cabeça com meneios rápidos como os de um pássaro. Parei para ver o desenho: um barquinho torto e esquisito no meio de um mar escuro que podia ser o rio Negro ou o Amazonas. Além do mar, uma faixa branca. Dobrou o papel com um gesto insolente, me encarou como se eu fosse intruso; de repente se levantou e estendeu a mão, me oferecendo o papel dobrado.”

Esta praça é o verdadeiro centro de Manaus. Durante o dia, tem pouco movimento, porque o calor abrasador afasta as pessoas da rua. Mas a partir do final da tarde, ganha vida. É nessa altura que se juntam as pessoas. À sexta-feira e sábado, por exemplo, é habitual haver grupos de jovens no meio da praça, em círculos de conversa ou de canções.

A comunidade desfruta da praça. Um dos pólos de atracção é a banquinha do Tacacá da Gisela, uma receita tradicional do Amazonas que faz sucesso do final da tarde em diante. O tacacá é feito com tucupi (um suco extraído da mandioca brava), goma (amido de mandioca), jambu (uma erva picante que deixa a boca ligeiramente dormente, porque tem um efeito anestésico) e camarões. Tem um sabor diferente de todos os outros caldos que já provámos.

O senhor Joaquim, dono da banca de tacacá e de um quiosque de jornais e livros, costuma projectar DVD de música ao vivo numa pequena tela, para animar os clientes: normalmente passa música brasileira (vimos Chico e Caetano, por exemplo), mas Joaquim Melo também tem Madredeus e Carlos Paredes na colecção.

A tarde/noite é também o momento ideal para fazer um périplo pelos bares e gelatarias. O Bar do Armando, que era de um português, tem mesas no passeio. Serve cervejas bem geladas (inteligentemente geladas, como diria Miguel Esteves Cardoso) e petiscos, incluindo os bolinhos de bacalhau que provam como a influência portuguesa se nota muito por aqui. É habitual haver música ao vivo. Na esquina, há uma gelataria, a Glacial, também fundada por portugueses, onde é possível experimentar sabores de que nunca se ouviu falar: cupuaçu, açaí, tucumã, pupunha ou taperebá.

--%>