Fugas - voltaaportugalem80dias

Continuação: página 2 de 3

Beber um ranhoso na terra de José Saramago

Dois foguetes assinalam a largada dos touros e o povo, empoleirado nas suas janelas com colchas, assiste à debandada dos bravos que perdem muito do marialvismo quando avistam o animal, possante e intimidador. Aqui a fanfarronice paga-se cara se o touro “enquerençar” com algum forcado mais afoito.

Bons ares da serra

Depois da largada de touros, invertemos a marcha, novamente para a região Centro, inesgotável filão. Desta vez para um dos mais desconhecidos e bonitos parques naturais do nosso país — o da serra de Aire e Candeeiros.

Com quartel montado na Pousada de Juventude dos Alvados e depois na casa da avó Nela no Covão do Feto (abrigo oferecido pela Filipa e pelo seu tio Vítor), pudemos ensaiar quase todo o tipo de rotas que este enorme Parque Natural a uma hora de Lisboa oferece.

A rota histórica, de Alcobaça a Tomar, passando pelo Centro de Interpretação da Batalha de Aljubarrota, Mosteiro da Batalha e pelos altaneiros castelos de Porto de Mós, Ourém e Torres Novas, que se faz num dia madrugador.

Um pouco de turismo religioso, que, mesmo não redimindo pecados, sempre dá para admirar a imponência do novo Santuário de Fátima e o fervor religioso que leva milhares de pessoas à Cova da Iria no pico do Verão, a derreter velas de promessas. Por nós, uma estatueta de São Cristovão, padroeiro dos viajantes e automobilistas, foi o único acto de fé que praticámos na farisaica feira de merchandising religioso que se espalha nas ruas desta autêntica Quarteira dos peregrinos.

O melhor mesmo é ficar pela serra, sobretudo quando se tem um cicerone como o tio Vítor, que conhece todos os magníficos recantos — da Fórnea aos miradouros e aldeias perdidas nas encostas. Uma serra oca, com o calcário a sofrer de males de “osteoporose”, cavando extensas grutas. A mais conhecida e artificializada — a de Mira de Aire, ou as mais recônditas como a de Santo António e a dos Alvados, paraíso da espeleologia e das colónias de morcegos.

Depois da viagem ao centro da Terra, como num livro de Julio Verne, regressamos à Volta a Portugal em 80 dias com o Citroën Cactus. Perdemo-nos no milheiral das majestosas quintas do Parque do Paúl do Boquilobo para ir, inadvertidamente, desaguar numa bela aldeia ribatejana, sem saber que era a terra natal de José Saramago — Azinhaga do Ribatejo.

A estátua do escritor instigou a epifania que se seguiu: um ranhoso em memória de Saramago. O ranhoso é a medida do copo de pobre a 20 cêntimos, de vinho branco fresco e paladoso, mais económico que os 40 cêntimos da taça aburguesada.

Por fim, e com a Viagem a Portugal de Saramago no bolso, apontamos o rocinante C4 Cactus ao coração do Pinhal Interior, o Centro Geodésico de Portugal, em Vila de Rei: “O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite (…) É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.”

É isto, enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar. Até já.

--%>