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Volta a Portugal em 80 dias

Por João Ferreira Oliveira (texto e fotos)

Durante quase três meses, três jornalistas, João Ferreira Oliveira, Rui Pelejão e Jorge Flores vão percorrer o país de Norte a Sul. Sempre de carro e com muitas paragens pelo caminho. Eis as primeiras 48 horas.

Escrevo debaixo da ponte, ao som de uma música popular que não sei o nome mas canto a letra, abençoado pela superlua e pela Nossa Senhora da Boa Viagem, e pergunto-me se será mesmo verdade que apenas passaram dois dias desde a nossa saída, tantas são as terras que esta Volta já percorreu. Espanto-me na primeira pessoa, mas falo no plural, pois a aventura é a três. Há cerca de dois anos, no Cais do Sodré, em Lisboa, a cidade onde tudo acontece, juntámo-nos para chorar os nossos empregos perdidos, o que é que vamos fazer?, o que é que vamos fazer agora?, e acabámos a noite a fazer juras de projectos em comum, a imaginar viagens e reportagens por esse país fora.

Se para a frente é que é caminho, iríamos os três, de carro, porque a pé cansa muito, de mota não sabemos andar e, até prova em contrário, o automóvel é a forma mais completa de conhecer um destino. Isso e os programas de domingo à tarde das televisões portuguesas. Fomos riscando mapas e ganhando noites de conversa até chegar ao projecto ideal. Não poderia ser uma mera escapadinha de fim-de-semana, um roteiro de Verão ou um guia festas e romarias. Teria que ser algo em grande, com tempo, porque não uma Volta a Portugal em 80 dias?, gritámos. Se Júlio Verne deu a Volta ao Mundo em 80 dias e Cortázar deu a Volta ao Dia em 80 mundos, nós iríamos dar a volta às nossas vidas e pelo caminho conhecer Portugal continental de uma ponta à outra.

Impusemo-nos apenas duas condições: não andaríamos por auto-estradas, nem esta viagem serviria para nos encontrarmos, que de lamentos existenciais estão as livrarias de aeroportos cheias. Tudo o que queríamos era precisamente ter a liberdade de nos perdermos, seguir por estradas secundárias, becos sem saída, na esperança de que os maus caminhos nos levassem à terra, à paisagem e às pessoas certas. A uma boa história. Eis-nos agora aqui, às duas da manhã de um domingo de Agosto, em Penacova, pouco mais de 48 horas depois da saída, a dançar debaixo da ponte na festa em honra da Nossa Senhora da Boa Viagem, quem poderia desejar um começo de viagem mais abençoado do que este?

Dois mundos opostos

Saímos de Lisboa na sexta ao final da tarde e partimos em direcção à Arruda dos Vinhos, não só porque ali tínhamos uma casa onde ficar (ter uma casa, um sofá ou um hotel à disposição é um privilégio que não nos podemos dar ao luxo de recusar), mas igualmente curiosos com a primeira edição do Curt´Arruda, o Festival de Cinema Urbano Mais Rural de Portugal. Festivais há muitos, e feitos à medida, mas não um festival com estas características, garante Joel Rodrigues, ele que, juntamente com André Agostinho, é a cabeça e a cara do evento. Dois jovens formados em Cinema, filhos da terra e amantes de histórias de terror que pretendem ressuscitar a antiga sala da vila, actual Clube Recreativo e Desportivo Arrudense (CRDA).

“Desde 2010 que fazemos algumas mostras e pensámos organizar um festival. Um festival de cinema é algo urbano por natureza, mas tinha que ter também as características locais. Aqui há muita pecuária, muita ruralidade, mas também uma auto-estrada que liga directamente a Lisboa, a cerca de meia hora de distância. Queríamos ter esses dois mundos.” Como todos os guiões que se prezem, esta história guardava um acontecimento inesperado. “Quando estávamos a preparar o festival encontrámos uma algumas bobines abandonadas. Percebemos que eram as bobines do Manhã Submersa, o último filme exibido nesta sala em 1982. Contactámos Lauro António, o realizador, e fizemos um ciclo em sua homenagem.” Não vimos nem conversámos com Lauro António, que apenas estaria presente no dia seguinte, e nós no dia seguinte já estávamos em Santa Maria da Feira, na Viagem Medieval, para o tiro de partida oficial da nossa aventura.

Dois mundos opostos. De um lado um festival amador, virgem, uma tela defeituosa, curtas e realizadores que ainda têm muito para crescer, mas uma vontade que só o amor e a idade parecem emprestar. “Temos um movimento de cinema, a que chamamos cinema independente. É isto que está aqui”, diz Joel, apontando para uma tatuagem no braço esquerdo. “Na primeira sessão vendemos mais de 50 bilhetes. Não estávamos à espera de ter tantas pessoas a uma sexta-feira às quatro da tarde.” Do outro lado uma evento gigante, a maior recriação histórica medieval do país, uma feira que durante 11 dias fecha por completo o centro da cidade e que este ano terá batido todos os recordes de visitas, precisamente no dia em por lá passamos: perto de 70 mil pessoas. Cerca de 33 hectares, à volta de 1000 figurantes, 31 áreas temáticas e mais uma série de números que impressionam qualquer um, até três cosmopolitas preconceituosos como nós. Como eu. A viagem é nossa, mas os preconceitos são meus, este pelo menos.

Assim que me falaram na possibilidade de ir a Santa Maria da Feira torci o nariz, gritei que este tipo de eventos é para pacóvios e sopeiras e meia dúzia de horas depois era ver-me ali agarrado a arco e à flecha, a comer papas de sarrabulho e a beber shots na barraquinha da Ana Rita Leite e amigos. Artista plástica, cenógrafa, professora, a servir sangria e copos de aguardente de canela da ilha Terceira há cerca de quatro anos. “Vimos à feira e trabalhamos aqui desde os 18 anos, até que decidimos abrir o nosso próprio espaço. Voltem mais tarde, estamos aqui até às três da manhã.” Não voltámos. Seguimos para casa de uma amiga de longa data, que nos acolheu por uma noite e nos deixou sair sem pedir nada em troca, sobretudo tempo. “Regressem mais tarde, quando estiverem mais livres.”

Curiosa expressão, esta. Partirmos à procura de liberdade, sem rumo, sem rota e em tão pouco tempo já fizemos mais de seiscentos quilómetros, presos a uma vontade sôfrega de desbravar caminho contra a qual três viajantes mais ou menos experimentados já deveriam estar vacinados. Lisboa, Arruda dos Vinhos, Santa Maria da Feira, Furadouro, Dunas de São Jacinto, Luso e agora Penacova, tudo em dois dias, sempre com os olhos postos na paisagem, mas quase sempre sem paragens, agarrados ao volante e à estrada. Era o centro que procurávamos, nesta primeira fase, o centrão, o país dos emigrantes, das serras, da saudade, dos velhos, um postal pitoresco que apenas parecemos olhar em Agosto e que nos esquecemos durante o resto do ano. Agora que cá chegamos, agora que estamos, a dançar e a cantar debaixo de uma ponte à beira do Mondego, na Azenha do Rio, uma ponte que começou a ser construída em 1883 e foi terminada em 1906, que demorou 23 anos a fazer, antes de cair duas vezes, podemos finalmente relaxar. Assim que a festa termine, juraram-nos que termina em breve, seguiremos para a Lousã, onde ficaremos alojados durante dois dias, na Pousada da Juventude, três adultos à procura das suas férias grandes e de histórias para contar.

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