Fugas - voltaaportugalem80dias

Do Paraíso ao Portal do Inferno

Por Jorge Flores (texto e fotos)

A terceira semana na estrada começou em Tomar, no Café Paraíso. Depois, abrimos os pulmões e cirandámos pelas serras do Luso, Caramulo e Buçaco. Em Coimbra, purgámos os pecados na Festa das Cebolas, antes de subirmos ao Portal do Inferno, em Arouca, onde o diabo tem uma vista privilegiada.

Rimbaud que me perdoe, mas a cerveja prefiro bebê-la no Paraíso. No Café Paraíso, em Tomar. No inferno escolherei uma bebida mais forte para o diabo não achar que sou um menino.

Na terceira semana de estrada na nossa Volta a Portugal de Citroën C4 Cactus desviámos a rota para Tomar. Culpa minha, que acredito que devemos sempre voltar às cidades onde fomos felizes. Não há quem não tenha um familiar, um amigo, um amor ou uma história nesta terra ribatejana. Senti que voltava a casa quando entrei no Paraíso. O café continua firme na Rua Serpa Pinto. Sempre nas mãos da família Mota, desde 1911. Tudo começa aqui. “De manhã é o paraíso, de facto, de tarde, o purgatório e à noite o inferno”, brinca Xana, gerente do café há mais de duas décadas.

Aqui vêm as famílias comer as suas torradas matinais, os ressacados da noite para beber o primeiro café da tarde e os mesmos ressacados da tarde para o primeiro copo antes de se lançarem na noite tomarense. Os tomarenses têm uma particularidade: partem aos bandos à procura de oportunidades, mas não perdem a oportunidade de bater no peito e gritar as suas origens. Diz quem nunca partiu. “Um dia, chegou um senhor a quem atendi porque a casa estava cheia e andava a dar apoio às mesas. No fim, antes de pagar, o senhor virou-se para mim e perguntou-me se o atendimento era sempre assim tão simpático, ou se tinha sido assim por ele ser quem era”, conta. E a Xana? “Perguntei-lhe logo: ‘ai sim, e quem é o senhor?’”. Parece que se tratava de “um ministro qualquer”, mas ainda hoje não sabe o seu nome.

A Rua Serpa Pinto, também conhecida como a Corredoura, uma vez que os templários treinavam os seus duelos a cavalo nesta artéria, é o principal eixo de Tomar. Conta-se que um turista norte-americano passou toda a semana de férias sem tirar os pés da rua. Convento de Cristo? Sinagoga judaica? Não, obrigado, já tinha visto os monumentos históricos na Net.

Sónia Pais sempre viveu na cidade, mas trabalhou muitos anos como responsável da Escola de Hotelaria e Turismo de Santarém. Hoje gere o Hostel 2300 Thomar — na mesma rua. Considera que a cidade começa a despertar de um pesadelo. “Há uns anos, nesta rua, só se viam lojas fechadas, mas agora estão todas a abrir. Há muitos jovens a investir nos seus negócios.” O seu hostel, o primeiro da cidade, ainda repousa depois de um fim-de-semana “de loucos” devido à festa dos Cem Soldos ali ao lado. Jura que fica amiga de todos os clientes. Mark, um inglês de nariz vermelhusco, apaixonou-se pelo hostel, pela gerente e pela terra. Tudo ao mesmo tempo. E decidiu ficar! Se possível ser tomarense! Sónia Pais arranjou-lhe uma casa e ele ainda hoje anda pela cidade a dizer a quem o queira ouvir: “Já tenho a minha casinha em Tomar! Já tenho a minha casinha em Tomar!”...

A Rua Serpa Pinto desagua na Praça da República e ao fim da tarde ainda não saíra da mesma rua. As conversas sucediam-se. Todos se conhecem. Luís Campos e a namorada Catarina estacionam as suas Piaggio transformadas para albergar duas pessoas. Há dois meses lançaram os Tuk Lovers, uma empresa que faz visitas guiadas de Piaggio. Açoriano de raiz, Luís foi adoptado pela cidade em 1998. “Vamos dar uma volta?”. Vamos pois! Percorremos as ruas por onde os carros não passam, espreitámos o Convento de Cristo de um ângulo improvável, passeámos pelo interior da Mata dos Sete Montes e ainda nos demos ao luxo de ir até ao Aqueduto de Pegões roubar figos. Luís ia explicando a história da cidade informalmente. Mais do que aos livros, a informação bebeu-a da população mais velha. Uma cultura viva.

O passeio terminou na praça central, onde se encontra também a Taverna Antiqua, o restaurante de Emanuel Rosa. Nascido em Leiria, este jovem de 30 anos veio para cá estudar restauro. Agora, com outro sócio, têm uma empresa de “restauro e outra de restauração”. O restaurante a que muitos chamam medieval devido ao ambiente rigoroso da época começa finalmente a ganhar músculo, depois de um primeiro ano complicado. “Nesta cidade é difícil fazer algo de diferente, mexer com o estabelecido”, revela. Em tempos esteve para trazer para a cidade um investimento grandioso de uma empresa que pretendia fazer uma feira medieval dentro do Convento de Cristo. Os responsáveis do monumento deram o “sim”, mas o status quo camarário não deixaria avançar a ideia.

A ideia inicial era beber um hidromel, bebida típica da Taverna Antiqua. Mas não havia e acabámos por jantar. E por provar antes a aguardente do avô de Emanuel. Quando é do avô é sempre pior. Faz-nos querer ficar. Pelas 5h da manhã cheguei a temer que me acontecesse o mesmo que a Anthony, um físico irlandês, de 73 anos, olhar intenso e rabo de cavalo branco. “Andava a dar a volta ao mundo há nove anos... até que chegou a Tomar”, conta Emanuel. E então? “Já cá está há três anos, apesar de continuar a dizer que está a caminho de Marrocos e que apenas parou para descansar”...

A purga da cebola

Depois das frenéticas 48 horas de Tomar, o ziguezaguear nas serras do Luso, Caramulo e Buçaco embalou o C4 Cactus, que parecia conduzir-se sozinho. Bom para abrir os pulmões antes de apontar para Coimbra, onde chegámos algo desencantados pelo cansaço. Nada que me impedisse de ir até à Feira das Cebolas. A época alta em Coimbra é todo o ano menos Agosto. Os estudantes dão cor ao eterno luto da cidade. Mas não choremos sobre a cebola descascada. Os ranchos folclóricos faziam o que podiam e os convivas lá trocavam dois pés de dança por um copo de tinto. Cebolas havia muitas, mas ninguém lhes pegava. “Nesta feira ninguém compra nada. Venho à feira há 28 anos, só falhei a primeira. Sempre é melhor do que ficar em casa a ver a novela”, diz a D. Maria. Ao lado, um casal discutia a origem do mundo. Ou da cebola. Ele: “É um legume!”. Ela: “Não é nada, é uma planta!”. Ele ainda: “Ai é?, então fica com a tua”, dando dois safanões para ajeitar o jornal.

Distraí-me por uns momentos a apontar ideias e quando reparei tinha ao meu lado um sujeito de metro e meio a olhar-me. Curioso. Vítor Rodrigues é o seu nome, mas insistiu que o tratasse por Minau. “Já conheci o Jorge Gabriel”, afiança. Nas festas? “Pois claro, então onde havia de ser?”... Minau vive de biscates e está à espera que o rancho folclórico da Ereira termine a sua actuação para levantar as mesas. “Ajudar, que isto é muita mesa”, emenda. “Esse gajo não é de Coimbra!”, grita um conhecido seu quando o vê posar para a fotografia. “Sou de Coimbra sim senhor, sou de onde quiser!”. Depois, baixinho, lá confessou. “Sou de Vendas de Santana, mas lá ainda há menos para fazer do que em Coimbra. Mesmo com as fábricas todas as fechar aqui.”

Minau gosta das “latadas com os putos”. E à sua maneira não deixa de ter vida académica. “Bebo sempre uns copos com os putos. Só não estudo, mas eles também não.” Além do mais, “quando acabarem os cursos o que vão os coitados dos putos fazer? Biscates! Só há biscates para fazer.” Homem de princípios, gostava de cumprir uma promessa antiga. Há uns anos, ia a caminho de uns biscates em Mafra, mas enganou-se e saiu na paragem errada. Em Loures. “Chovia como o raio”. Andou e andou até entrar num restaurante, “encharcado como um pato”. A senhora tratou-o bem. “Deu-me de comer e ainda me deu uma nota de 20 euros”. Tudo o que Minau queria era poder um dia aparecer-lhe à frente “com um leitãozinho de prenda”. “Ela merecia”.

Depois do Paraíso e do purgatório das cebolas em Coimbra tinha planos para terminar em grande a semana: no Portal do Inferno. Lá fui fazendo as curvas e contracurvas, buzinando como se houvesse vivalma por perto. E como se me fosse equilibrando nas vertiginosas vias. Seria de esperar que o inferno fosse um pouco mais povoado, mas não. Em todo o caso, o diabo, que dizem estar escondido entre as fendas, tem uma vista privilegiada sobre as serras da Arada, de São Macário e da Freita.

Chegar ao inferno não tem nada que saber. É sempre a subir — lá cai mais um mito. Podemos ir por Arouca ou por São Pedro do Sul. Mas como estava meio perdido julgo ter encontrado um atalho. A garra desenhada na montanha confesso que só a vi muito a custo. Segui só porque decidi que iria dormir na serra. No carro. Uma parvoíce, disseram-me os meus companheiros. Fui obrigado a concordar mal a noite ameaçou cair. Acabei por juntar-me a eles na Aldeia da Pena, a 20 quilómetros dali, no meio do grande nada. Mas antes disso ainda reclinei os bancos do C4 Cactus e fiquei a escutar um finíssimo eco de um coro algures numa igreja invisível pela distância. Depois o silêncio total. Apenas o som dos demónios lá fora a acalmarem os cá de dentro.

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