Fugas - voltaaportugalem80dias

Beber um ranhoso na terra de José Saramago

Por Rui Pelejão

Na segunda semana na estrada, descemos ao centro da Terra nas grutas da serra dos Candeeiros e fomos ao centro geodésico de Portugal em Vila de Rei. Pelo meio, descobrimos o Clube da Malta em Alcochete, as aldeias de xisto da serra da Lousã e a medida de copo de branco na terra do Nobel português da Literatura.

Mais uma ficha, mais uma voltinha. O inconfundível som da sirene dos carrinhos de choque está tatuado na memória como a da corneta madrugadora do Family Frost com que os vendedores ambulantes despertam as aldeias por esse país dentro. Aldeias que em Agosto se enchem de vida outra vez, com o regresso dos filhos da terra, a diáspora espalhada pelos quatro cantos do mundo, da Venezuela a Odivelas. Aqui, em Vila Nova de Poiares, no centrão de Portugal, as festas em honra da Nossa Senhora das Necessidades estão ainda um pouco chochas: “O pessoal janta em casa, é a crise”, determina a despachada jovem que vende as senhas para o frango assado e o pica-pau na barraquinha dos “Finalistas”.

As estradas nacionais são, por estes dias de Agosto, uma autêntica festa. Aldeia sim, aldeia não, há procissão, filarmónica na rua, vendedores ambulantes, barraquinhas de alguns comes e muitos bebes. Todas as terras se orgulham de ser a capital de qualquer coisa. Só da chanfana já contámos três, fora os dez cafés centrais, as cinco terras chamadas Carvalhal e os sete pavilhões multiusos.

Do xisto a Alcochete

Como não temos programa detalhado e viajamos por impulso, aceitamos o convite de um amigo para ir assistir às Festas do Barrete Verde e das Salinas de Alcochete. Uma oportunidade para ver outro tipo de festas que se estende sobretudo pelas duas margens do Tejo e pelo Alentejo.

Foi por isso que deixámos a paz e o silêncio da serra da Lousã, onde nos entrincheirámos dois dias, e rumámos a Sul. Não sem antes visitar as aldeias de xisto daquela verdejante serra no distrito de Coimbra.

Cerdeira, Candal e Talasnal são três aldeias que integram a mais vasta rede de aldeias de xisto. Na Cerdeira, encontramos Emma e Alwina, duas estudantes de artes plásticas que estão aqui a fazer uma residência artística de seis meses. Alwina, natural do Cazaquistão, mostra-nos o seu atelier e as suas etéreas pinturas inspiradas na beleza e isolamento da serra. “É um local maravilhoso para trabalhar, respirar e reflectir sobre a arte. O silêncio é mágico. A semana passada fui ao Porto e ia dando em maluca com o barulho.”

A janela do atelier emoldura a vastidão da serra e mostra-nos que se pode viver no silêncio do país secreto como um eremita pós-moderno. Para já, deixar crescer barba e abraçar o misticismo não está nos nossos planos e esporeamos o nosso rocinante, rumo a Sul.

A vibrante festa de Alcochete foi inventada nos anos 40 do século passado por um grupo de alcochetenses liderados por José André Santos, um dinâmico jornalista. Hoje transformada num dormitório de Lisboa, Alcochete preserva o encanto de uma vila ribeirinha do Tejo. Nesta semana de Festa do Barrete Verde e das Salinas respira-se uma atmosfera de feira sevilhana. Aqui a Maestranza são as ruas da vila, acolchoadas de areia e entaipadas com protecções de madeira.

O cabeça de cartaz é o touro e a cultura do campino, conforme explica Augusto Madeira, do Clube da Malta, tertúlia alcochetense com trinta anos e mais de 60 membros: “O fado e a cultura tauromáquica estão no coração das pessoas de Alcochete. Para fazer parte deste clube tem de se comungar da mística e preencher três condições — gostar de fados, de touradas e de Alcochete.”

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