Fugas - restaurantes e bares

Fernando Veludo/nFactos

A crítica gastronómica

Por Fortunato da Câmara

Nasceu de forma polémica e assim se mantém até hoje. A crítica gastronómica evoluiu e divide o protagonismo com os novos media. No entanto, ainda surpreende, pois na chamada sociedade 2.0 nem sempre o conhecimento parece ser sinónimo de discernimento.

Numa capital europeia, um grupo de amigos reúne-se semanalmente para provar diversos pratos e especialidades da gastronomia local, enviados por restaurantes e charcutarias finas. Este júri informal constituído por pessoas influentes na cidade publica um guia de sucesso e emite “certificados de qualidade” que os proprietários das lojas afixam orgulhosamente nas montras. A publicação ganhou prestígio, mas ao mesmo tempo foi coleccionando inimigos entre os donos dos estabelecimentos com piores classificações, que acusavam o grupo de ser parcial e fazer avaliações subjectivas. Após algumas edições e muitos protestos, o guia deixou de ser publicado. 

Hoje parece difícil acreditar que isto possa acontecer, mas a história é verídica e aconteceu no início do século XIX, quando Grimod La Reynière publicou Almanach des Gourmands (1803). La Reynière era um aristocrata e herdeiro de uma grande fortuna, que tinha a fama de libertino por organizar jantares sumptuosos e “mundanos” na sua mansão parisiense. Com a Revolução Francesa (1789), a classe emergente de burgueses procurava replicar o modus vivendi da aristocracia monárquica, entre eles o saber comer. Antigos cozinheiros de famílias aristocratas abriram em Paris vários restaurantes que popularizaram a refeição como acto social entre a burguesia. O conceito de “mesa à francesa” começava a desenhar-se. 

La Reynière constituiu, entre amigos ilustres, um júri gastronómico para avaliar e classificar os pratos e especialidades que lhes eram enviadas gratuitamente, e que figuravam em guias muito populares entre os burgueses. A expressão “não há almoços grátis!” ainda não existia, no entanto parece ter sido ela que ditou o fim doAlmanach des Gourmands, em 1812, devido à insatisfação de alguns visados com as notas que eram atribuídas. Grimod La Reynière entrou em declínio, mas fez nascer a crítica gastronómica. 

Desde então o género foi sendo exercido por escritores, jornalistas e gastrónomos de prestígio em diversos países. Por cá, foi preciso esperar 150 anos até Alfredo de Morais se iniciar no jornal O Cronista (1954), seguido por Daniel Constant, Luís de Sttau Monteiro, Maria de Lourdes Modesto e outros. Entre as referências mais recentes estão José Quitério e David Lopes Ramos (crítico do PÚBLICO que faleceu em 2011), o espanhol Carlos Maribona, os ingleses Fay Maschler e Jay Rainer, o francês François Simon ou o norte-americano Jonathan Gold, que em 2007 fez história ao receber o primeiro Pulitzer (prémio de jornalismo dos EUA) atribuído à crítica gastronómica. Gold, do LA Weekly, distinguiu-se por servir aos leitores a sua deliciosa prosa, com uma boa dose de conhecimento e pitadas cirúrgicas de humor e acutilância. 

Os desafios da crítica têm vindo a ser debatidos nos últimos anos. Se em França o anonimato e a imparcialidade polarizam a discussão nos livros Les Cuisines de la Critique Gastronomique (Éditions du Seuil, 2009) e Le Livre Noir de la Gastronomie Française (Flammarion, 2011), onde é posta a nu a “promiscuidade” entre alguns críticos, inspectores de guias de restaurantes, chefs de cozinha, jornalistas e assessores de imprensa, em Espanha o assunto foi estudado desde a sua origem na tese de doutoramento La Cocina de la Crítica (Universidad del País Vasco, 2013). 

O tema mantém hoje a mesma polémica com que nasceu: ao contrário da crítica de literatura, música ou cinema, cujas obras não podem ser alteradas pelos seus autores, numa refeição há um conjunto de factores, desde a comida ao restaurante, que se mantém “em aberto” quando são analisados. Esta particularidade foi demonstrada em Julho de 2013, quando Pete Wells, do The New York Times, chocou as elites gastronómicas ao baixar de quatro para três estrelas o prestigiado Daniel do chef Daniel Boulod. Wells, cuja identidade é conhecida, apontou algumas falhas na comida e discrepância de serviço ao jantar em simultâneo com um colega de redacção anónimo, mas em mesas separadas e distantes. “As nossas refeições foram virtualmente idênticas, mas a experiência não”, refere Wells, acrescentando que lhe foram servidos extras e que teve um tratamento diferenciado do seu colega em diversos detalhes, justificando assim a sua crítica a um restaurante que em geral é muito aclamado nas redes sociais.

A recente mediatização da gastronomia e dos chefs de cozinha fez surgir as assessorias de imprensa como meio para publicitar e promover restaurantes e cozinheiros em diversas plataformas. Refeições organizadas para jornalistas e bloggers influentes são acções de comunicação pensadas para terem eco na imprensa e na Internet. A linha ténue entre o que é crítica ou apenas divulgação torna-se frágil e difícil de discernir para muitos leitores. A urgência desta distinção foi recentemente reclamada por um chef de cozinha. Em Março, num “conclave” com jornalistas de oito países para apresentar a Fundação El Bulli, Ferran Adrià fez o seguinte apelo: “Os jornalistas gastronómicos deviam encontrar-se e clarificarem os seus papéis. Jornalistas, críticos, food writers, escritores para redes sociais.” Conhecido por ser um visionário, o cozinheiro catalão parece estar a sugerir o óbvio, mas que afinal muitos ainda não viram.

--%>