Saída de Lisboa no avião da Royal Air Maroc com destino a Casablanca. O voo que agora realizamos, em sentido inverso, era o procurado por todos os exilados e expatriados que viviam em Casablanca nos tempos da Segunda Guerra Mundial com o objetivo de, a partir de Lisboa, chegar aos Estados Unidos. Voo tranquilo, com a chegada a Casablanca, escala para Marraquexe. Na zona de trânsito, as primeiras imagens de África — figuras de uma tonalidade de pele de um negro intenso, dignas, numa verticalidade assombrosa, em suspensão; djellabas em tons ocre e vestidos multicores, trajes berberes “azul Majorelle”. Cerca de duas horas depois, o voo de ligação a Marraquexe.
Chegada ao aeroporto e encontro com Abderrhamane, o anfitrião ao longo da estada.
Partimos num grand táxi em direcção ao pequeno apartamento alugado na medina (a poucos metros da Praça Djemáa el-Fna). Neste final de tarde, era impreterível uma deslocação à praça — a animação era já imensa.
Fundada em 1071 por Yusuf ibn Tashfin, a cidade de Marraquexe apresenta ainda as marcas deste guerreiro almorávida, patentes nas muralhas, no extenso palmeiral (hoje em avançado estado de degradação), nas mesquitas e nos mercados.
A cidade era o destino das caravanas vindas da África profunda com destino ao Norte e à Península Ibérica. Deste trânsito nasceram os fondouks-caravançarais, espaços de início constituídos por tendas e mais tarde edificados numa estrutura base de dois pisos — o térreo e um primeiro andar com alojamentos dispostos ao logo de um varandim —, onde homens, animais e carga se recolhiam, e que ainda são visíveis na medina, embora, agora, muito decadentes.
Em Marraquexe, como centro do mundo, temos, na medina, a Praça Djemáa el-Fna. Espaço de permanência, espaço de trânsito, rodeada de mesquitas e cafés, a praça fervilha de gente, tendo o entardecer como momento de maior animação — são instantes de autêntica magia, nestes momentos tanto o olhar como o corpo são profundamente marcados por imagens, odores, ecos de cânticos, de contadores de histórias, de músicos gnawa, do canto do muezzin chamando à oração.
A madrassa de Ben Youssef, situada por trás dos bazares e souks junto à praça, é um espaço de visita obrigatório. Tida como uma das maiores do Norte de África nos seus tempos áureos, apresenta um edifício numa estrutura de dois pisos — o piso térreo e o piso superior com as celas dos estudantes (espaços sóbrios com liteira, samovar para aquecer a água para o chá e estante para a leitura do Alcorão). No pátio interior, um espelho de água para abluções com as paredes ornamentadas com madeira de cedro nos beirais, estuque, mármore e azulejos coloridos. É um espaço propício ao recolhimento e ao silêncio.
Outro ponto a visitar é o Palácio de el-Bali. Mandado erguer pelo sultão Sahadi Ahmud al-Mansur no século XVI, encontra-se agora em estado avançado de ruína — resistem, com algum vigor, as muralhas e uma ou outra torre. Nestas, as sempre eternas cegonhas. Num dos pontos da muralha que ainda resta é possível ter uma perspectiva dos telhados da medina repletos de antenas parabólicas — é o mundo da imagem que vai ocupando o espaço do alfabeto.
Marraquexe é a cidade privilegiada para derivas urbanas. Falamos da medina, das ruas, recantos e vielas onde é fácil ao caminhante viver um movimento improvável — é sair do local de residência, enfrentar a rua, e avançar, perdendo-se.
O Jardim Majorelle, obra de Jacques Majorelle (1886-1962), pintor que chega a Marraquexe em 1917 depois de uma curta estância em Casablanca, merece a nossa visita. Apaixonado por África e Marrocos, irá construir um jardim, com casa e atelier (com traço do arquitecto Paul Sinoir) que tornará sua residência permanente. A casa-atelier abriga nos nossos dias o Museu Berbere, com a colecção reunida por Pierre Bergé e Yves Saint Laurent, que adquiriu a propriedade e lá residiu.
Num dos hammams da cidade, em visita única, foi possível desfrutar de uma sensação de plenitude clara — o corpo deitado e relaxado nas pedras, a água que caía para o retemperar da violência da humidade iludia o cansaço do mundo.
O dia de regresso a Lisboa aproximava-se e não podíamos partir sem uma excursão ao Alto Atlas. Dirigimo-nos a Ouhka, pequena povoação na vertente norte, onde saboreámos uma óptima tajine. Dos terraços, sentia-se a presença das montanhas próximas, altas, agrestes e nevadas, silenciosas.
O dia da partida chegou. Depois de um ligeiro sobressalto (o voo para Casablanca foi substituído por uma viagem em minibus), a estrada levou-nos de regresso.