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Marrocos, vento, areia e estrelas

Por Humberto Lopes (texto e fotos)

O Sul do Sul. Quase um milhar de quilómetros pelas terras mais meridionais de Marrocos, de Tarfaya aos oásis de Akka e de Tata, aos pés do Anti-Atlas. Uma viagem por uma região ainda guardada da vertigem do turismo, entre a equívoca "monotonia" do deserto e o silêncio das estrelas. E as inspirações para um clássico imortal, "O Principezinho".

São o vento e a areia os senhores deste reino, deste deserto que irradia em todas as direcções e só se detém face ao Atlântico. Mal se vê a fita de asfalto, invadida aqui e ali pelas areias, que se amontoam em nómadas montículos que não têm tempo de alcançar o estatuto de dunas. O vento varre com uma fúria demente a planura árida e leva-as até dezenas e dezenas de quilómetros para o interior. Em Layounne, cidade imersa no deserto, ensaia-se uma exasperada rede de vegetação à volta para tentar conter o cerco das areias.

O grand-taxi, um meio de transporte colectivo muito popular em Marrocos, é veterano nestas estradas. Estamos a caminho de Tarfaya, no litoral, e o veículo, com o pára-brisas estilhaçado, afronta a tempestade fazendo roncar os seus cavalos mecânicos, indiferente ao ulular da ventania e à chuva de areia a aguilhoar a velha carcaça. Somos quatro no banco traseiro. Eu sigo apertado entre uma roliça sarauí, com a sua melfha larga e colorida, e um marroquino com ar de asceta. Apesar da tempestade de areia, em pouco mais de uma hora temos à vista as primeiras casas de Tarfaya, o porto de pesca que acolheu, há quase cem anos, Antoine de Saint-Exupéry, nos tempos da Societé Latécoère, pioneira no estabelecimento do correio aéreo entre Toulouse e Dacar, e, depois, já com o nome de Aéropostale, até à América do Sul, até Buenos Aires, até ao desterro de Rio Gallegos, na Patagónia.

Eram também os tempos de pioneirismo dos voos nocturnos, de que Saint-Exupéry foi um dos primeiros pilotos, aventura e prodígio que ele descreve em Vol de nuit. As dificuldades de navegação aérea com as limitadas condições tecnológicas da época identificam-se bem nas circunstâncias que levaram ao acidente ocorrido durante um desses voos, entre a Líbia e o Egipto. Saint-Exupéry e o seu companheiro Prévot permaneceram vários dias no deserto, apenas com umas escassas gotas de água, até serem resgatados por um beduíno de passagem. O episódio é narrado naquele que é, porventura, o seu mais belo livro, Terre des Hommes, e essa experiência é tida como inspiradora da escrita de O Principezinho.

Nessa altura, Saint-Exupéry e Prévot decidiram caminhar pelo deserto na direcção Este-Nordeste, pela simples razão, contou ele num capítulo do livro, de que o seu camarada Henri Guillaumet o tinha também feito, numa situação semelhante, nos Andes, e dessa forma logrado a salvação. “Et ceci encore contre toute raison, de même que contre tout espoir”, confessaria.

É também essa, justamente, a orientação deste itinerário pela região mais meridional de Marrocos, desde Tarfaya até aos oásis de Akka e Tata, sempre através de um território quase sem sombra da maquilhagem do turismo. Ali, à espontânea e sincera hospitalidade das gentes do Sul junta-se o imenso tesouro de uma natureza irrefreável, insubmissa, porventura maior do que a vida para os que amam deveras o deserto, cenário que Saint-Exupéry evocou no título da versão em inglês de Terre des Hommes: Wind, Sand and Stars.

Tarfaya, capital do vento

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