Desde a amurada
O enjoo é como o suborno: ninguém é imune. O preço é que pode ter de variar. Ninguém pode afirmar que nunca enjoa, o que existe são níveis diferentes de tolerância ao balanço do mar. O meu nível de tolerância não é alto, mas a minha fúria de viver é imensa. Encolho os ombros, cerro os dentes e embarco. Paciência com o male di mare, com a seasickness, serei um "mareado", sim, mas ávido de mar.
As experiências mais bonitas e transcendentais da minha vida de viajante têm acontecido a navegar. Caminhar em silêncio pelo convés, vazio de outra gente, chegar ao abismo de solidão que é a proa alongada sobre o escuro líquido de um oceano profundo, apoiar-me na amurada, ponderar o infinito. Parar. A substância mais primordial do planeta, a água, em baixo; e a substância mais primordial do Universo, o céu, em cima. Eu, no meio. Eis o que é navegar: é regressar ao princípio, ao mito da criação, à flutuação amniótica do tudo.
Não surpreende que ao longo dos milénios a navegação tenha sido sempre tão aclamada, tão mitificada pelas várias culturas do globo; e que os seus participantes navegadores tenham sido o paradigma do espírito aventureiro. Jasão, Ulisses, Sindbad, Gama, Magalhães, Cook. Não me surpreende. Eu sei.
Eis o que eu sei. Que navegar regenera. Que reconstitui. Que melhora. Sei que sou melhor do que alguma vez teria sido se nunca tivesse navegado. Naveguei três oceanos, sete mares, rios que são como mares, estreitos que são como auto-estradas marítimas, poderosos navios, velhos cargueiros, iates fretados, boleia fortuitas, passagens pagas, beliches, camarotes, bancos de convés, tarimbas de porão. Um pouco de tudo, um pasmo imenso. Que memórias salvaria eu de tanto navegar?
Um dos momentos fundamentais da minha existência terá sido a noite ancorado numa anónima lagoa de coral no arquipélago de San Blás, em águas territoriais do Panamá, à boleia no iate do italiano Federico a caminho da Colômbia. Porque é que o sono simplesmente não chegava? Porque eu sentia-me demasiado vivo e privilegiado para menosprezar este momento que eu sabia que nunca voltaria a repetir, que era único na minha vida. Ah, esquecia-me de mencionar uma coisa importante: a minha cama era o convés do iate. O texto: a Lua e as estrelas.
Outro momento a ressalvar de tanto navegar: a lenta subida do extensíssimo rio "das Amazonas", tal como o denominou Orellana quando o percorreu no sentido inverso ao meu, em 1541. Eu pretendia chegar ao Peru sem atravessar a Colômbia, onde tinha desembarcado depois da boleia de Federico: contornei esse país dilacerado pela guerra civil com um pequeno desvio de algumas semanas pela Venezuela e pelo Brasil. Em Manaus embarquei numa dessas improváveis balsas redentoras que quebram a solidão mais profunda das pequenas comunidades ao longo do Amazonas. Era a temporada das chuvas: uma vez mais a noite, agora sem Lua mas iluminada por tempestades de relâmpagos que seriam impossíveis em qualquer outra geografia; uma vez mais o silêncio e a contemplação; e uma vez mais eu na amurada, sem sono, vivo e deslumbrado a navegar.
Atravessei três oceanos em cargueiros. Precisei de tempo: doze dias para o Atlântico Norte, vinte e oito para o Pacifico Sul, outros vinte e sete para o Pacifico Norte e outros quinze para o Índico. Tudo junto soma três meses em que um homem entregue a si próprio - num caricato ostracismo de quem se sente passageiro persona non grata - navega numa operação marítima pensada para levar carga e não gente. "A nossa prioridade são os contentores, não as pessoas", repetiam os vários comandantes dos vários cargueiros que fui utilizando. E as outras pessoas eram de facto uma raridade.
E assim, sem quase nunca encontrar os tripulantes e sem outros passageiros com quem partilhar o espanto, eu passeava feliz da vida pelos conveses, sentava-me na ponta das proas, subia à torre da popa, olhava distraído, debruçado na amurada, os golfinhos dezenas de metros lá em baixo a saltar nos sulcos deixados pelos movimentos do motor, felizes da vida eles também. E de noite, sempre à noite, no silêncio e na contemplação que só o infinito líquido e ondulante dos oceanos permite, compreendia o mesmo que qualquer astronauta pode compreender: que este planeta nunca deveria ter sido chamado de Terra por ninguém, pois a sua substância fundamental é a água, e os indivíduos mais felizes da espécie humana são aqueles que a escolhem como caminho de viagem.
Naveguei como pude e onde pude esse épico internacional que é o Mekong, que nasce no Tibete, atravessa o Sul da China, faz de linha de fronteira várias vezes a vários países e, depois de quase cinco mil quilómetros de turbulência e poder, desagua no oceano Pacífico. Não tendo serviço regular de passageiros, muito menos de turistas, navegar o Mekong era um exercício complicado de cedências, saltos, improvisos. Mas não era um capricho; junto ao Mekong, e graças a ele, situavam-se algumas das mais bonitas marcas da presença humana na face do planeta. Ninguém devia ir-se embora deste lugar dentro de nós que é a Terra sem ter pelo menos visto os templos de Angkor, a cidade de Luang Prabang, as ruínas de Vat Phu. A questão não era: "para quê navegar o Mekong?"; mas, sim, "porque não o fazer já que estou nas suas margens?".
Nos anos trinta, em que todo o rio era um sonho colonial francês, demorava mais tempo navegar pelo Mekong abaixo desde Luang Prabang, no Laos, até Saigão, no Vietname, do que depois navegar pelos oceanos afora desde Saigão até Marselha. Hoje, nem sequer existe a comparação. Os continentes ligam-se por transporte aéreo; e as estradas que acompanham o rio, e lhe viram as costas com desprezo, ligam em poucas horas a China ao Delta e tornam obsoleto o curso de água como via de comércio. Ninguém navega nada - nem mercadorias nem pessoas. O Mekong existe apenas para quem não quer chegar. E por isso fui tão feliz nele.
Para terminar uma lista que se tornaria comprida - e deixando de fora, por exemplo, a navegação nos canais patagónicos e no estreito de Magalhães, a escrever precisamente a biografia de Magalhães; ou a travessia do Japão para a China, tentando recuperar das entrelinhas da Peregrinação o itinerário de um Fernão Mendes Pinto primeiro mercador, depois pirata e por fim missionário, das três ou quatro vezes que buscou o arquipélago nipónico -, regresso à equação feliz da lua cheia, brisa morna, silêncio e contemplação. Mas agora acrescento-lhe uma parcela imprevista e paradoxal - o deserto - para descrever uma das noites mais bonitas em absoluto da minha existência. Não sei qual foi exactamente. Foi uma das quatro ou cinco que são necessárias para completar a distância que separa Gao de Tombouctou através do Sahara. Foi a noite em que a lua cheia permitiu ver na distância uma duna com uma árvore ressequida e estática no sopé, imagem que é a própria definição do deserto. A brisa era morna, o silêncio profundo e nesse momento, também na distância mas sem ser possível identificar desde onde, chegou o canto de crianças. E as palmas, e gargalhadas alegres - longe na noite, passávamos por uma aldeia sem luz, quem sabe se tanta festa e felicidade eram para saudar a nossa passagem, viajantes iluminados pelo deserto fora em direcção a Tombouctou.
Ah, esquecia-me outra vez de mencionar uma coisa importante. Encontrava-me a bordo do cargueiro de passageiros Comanav, que semanalmente liga a fronteira com a capital do Mali pela única artéria de comunicação que vence o labirinto vazio do deserto, o rio Níger. Mil e quatrocentos quilómetros rio acima e abaixo. Os restantes companheiros de navegação dormiam, eu sem sono, outra vez amurada, com a mesma noção: a de que os momentos mais transcendentais do meu percurso num planeta que não se devia chamar Terra foram passados a navegar.
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"Um Lugar Dentro de Nós"
É o novo (e o nono) de Gonçalo Cadilhe. Acabado de publicar, encerra uma trilogia, segundo ao autor, "que se abriu com o 1 Km de Cada Vez e que foi apurada tematicamente com o Encontros Marcados". "Este ciclo tem como fio condutor a apresentação de histórias de viagem, mas não a sua partilha", diz Cadilhe. "Não pretende partilhar contigo as viagens dos outros (em que eu sou um dos outros); pretende inspirar-te com as viagens dos outros para que tu cumpras a tua". Agrupando crónicas, reflexões de viagens e fotos, é um manancial de pistas. Mas, avisa Cadilhe, "não sigas a minha viagem. Procura que a tua viagem surja dentro de ti". O livro tem 176 páginas, é uma edição do Clube do Autor e tem o preço de capa de 15,50€.