Desde a amurada
O enjoo é como o suborno: ninguém é imune. O preço é que pode ter de variar. Ninguém pode afirmar que nunca enjoa, o que existe são níveis diferentes de tolerância ao balanço do mar. O meu nível de tolerância não é alto, mas a minha fúria de viver é imensa. Encolho os ombros, cerro os dentes e embarco. Paciência com o male di mare, com a seasickness, serei um "mareado", sim, mas ávido de mar.
As experiências mais bonitas e transcendentais da minha vida de viajante têm acontecido a navegar. Caminhar em silêncio pelo convés, vazio de outra gente, chegar ao abismo de solidão que é a proa alongada sobre o escuro líquido de um oceano profundo, apoiar-me na amurada, ponderar o infinito. Parar. A substância mais primordial do planeta, a água, em baixo; e a substância mais primordial do Universo, o céu, em cima. Eu, no meio. Eis o que é navegar: é regressar ao princípio, ao mito da criação, à flutuação amniótica do tudo.
Não surpreende que ao longo dos milénios a navegação tenha sido sempre tão aclamada, tão mitificada pelas várias culturas do globo; e que os seus participantes navegadores tenham sido o paradigma do espírito aventureiro. Jasão, Ulisses, Sindbad, Gama, Magalhães, Cook. Não me surpreende. Eu sei.
Eis o que eu sei. Que navegar regenera. Que reconstitui. Que melhora. Sei que sou melhor do que alguma vez teria sido se nunca tivesse navegado. Naveguei três oceanos, sete mares, rios que são como mares, estreitos que são como auto-estradas marítimas, poderosos navios, velhos cargueiros, iates fretados, boleia fortuitas, passagens pagas, beliches, camarotes, bancos de convés, tarimbas de porão. Um pouco de tudo, um pasmo imenso. Que memórias salvaria eu de tanto navegar?