Fugas - restaurantes e bares

  • o mexilhão em escabeche apresentado numa falsa concha, entrada criada por João Rodrigues
    o mexilhão em escabeche apresentado numa falsa concha, entrada criada por João Rodrigues Miguel Manso
  • Miguel Manso
  • “A sardinha assada, o pimento, o azulejo... sou de Lisboa, a ideia foi trazer um pouco o que eu sou”, conta João Rodrigues
    “A sardinha assada, o pimento, o azulejo... sou de Lisboa, a ideia foi trazer um pouco o que eu sou”, conta João Rodrigues Miguel Manso
  • Paulo Barata e Ana Músico, os Amuse Bouche, que conceberam e organizam os jantares Origens
    Paulo Barata e Ana Músico, os Amuse Bouche, que conceberam e organizam os jantares Origens Miguel Manso

Chefs revelam as suas origens em jantares sem rede

Por Alexandra Prado Coelho

Informais, criativos, desafiantes, o que os jantares Origens pedem a cada cozinheiro é que, através da comida, conte quem é. Nasceram em Abril, com a iniciativa Sangue na Guelra, e vão acontecer a cada três meses.

Cozinhar sem rede, fora da zona de conforto, longe de aparelhos sofisticados. Apenas um grelhador a deitar fumo à beira do Tejo. Um regresso às origens. Para João Rodrigues, este foi o grande desafio do jantar Origens, que apresentou na segunda-feira passada e que para o chef do Feitoria, restaurante do Hotel Altis de Belém, detentor de uma estrela Michelin, representou uma oportunidade de mostrar a sua cozinha com toda a liberdade — imaginação e criatividade sem limites.

É precisamente para isso que servem os Origens. O de João Rodrigues — que se realizou no Vestigius Wine & Gin, no Cais do Sodré, em Lisboa — foi o primeiro de uma nova série. Ana Músico e Paulo Barata, os criadores deste conceito, querem que os Origens passem a acontecer de três em três meses, sempre com um jovem chefconvidado a apresentar a cozinha que o representa, que tem a ver com as suas origens, as suas influências, o seu percurso até aqui, dando pistas, claro, sobre o que será também o seu trabalho futuro.

“Os Origens apareceram naturalmente, quase por si só”, conta Ana Músico, sentada na esplanada do Vestígius, pouco antes do início do jantar. Esta responsável pela comunicação de vários espaços ligados à gastronomia, e o marido, o fotógrafo Paulo Barata, criaram a empresa Amuse Bouche e começaram, em 2013, a organizar um minifestival associado ao Peixe em Lisboa, a grande festa do peixe que se realiza todos os anos em Abril. Chamaram-lhe Sangue na Guelra – Young Chefs with Guts, porque a ideia era dar palco aos subchefs, os braços direitos dos chefs, figuras essenciais num restaurante, mas que geralmente são desconhecidos do público.

O Sangue na Guelra consiste em jantares planeados e executados a várias mãos por estes “número dois”, portugueses, estrangeiros e portugueses a trabalhar no estrangeiro, que assim podem também conhecer-se, trocar experiências, descobrir o trabalho uns dos outros. Ana conta como surgiu a ideia: “Nasce de uma viagem do Paulo [Barata] a Itália, onde ele conheceu o Enrico Vignolli, que organiza um evento também com jovens chefs, que é o Postrivoro. E o Enrico perguntou-lhe o que se fazia em Portugal e por onde andava a cozinha portuguesa. O Paulo disse-lhe que se faziam coisas, mas nada deste género, e o Enrico lançou-lhe o desafio: ‘Vai embora para o teu país e faz qualquer coisa’. Falámos nisto ao Duarte Calvão, director do Peixe em Lisboa, que achou a ideia incrível.”

A primeira edição aconteceu em 2013 e entre os chefs convidados estavam o japonês (já muito italiano) Yoji Tokuyoshi, da Osteria Francescana, o restaurante de Massimo Bottura em Modena, Itália (Enrico Vignolli é também assistente de Bottura), e Leandro Carreira, na altura a trabalhar com Nuno Mendes em Londres, no Viajante.

“Este ano, na segunda edição do Sangue na Guelra, em Abril, o Yoji e o Leandro vieram a Lisboa novamente, só porque queriam estar cá. E, uma vez cá, começámos a pensar o que é que podíamos fazer com eles”, conta Ana. “O conceito Origens já andava nas nossas cabeças. Liga-se ao Sangue na Guelra, claro, mas os Origens são jantares a solo, e ligam-se mesmo às origens do chef, às suas referências, não o que ele está a trabalhar no seu restaurante neste momento, mas coisas que ele tem cá dentro. O tipo de coisas de que se diz ‘hei-de trabalhar isto um dia, quando tiver oportunidade’”.

Na última edição do Sangue na Guelra, os jantares principais, a várias mãos, esgotaram duas semanas antes, e os Origens, com Yoji e Leandro, foram uma oportunidade para que quem não conseguiu lugar nos outros jantares pudesse também, de alguma forma, participar numa experiência que “é tão indie, tão alternativa como o Sangue na Guelra, ou se calhar até um pouco mais experimental”, diz Ana.

E, pensaram os organizadores, se a experiência tinha corrido bem, porque não dar-lhe continuidade? “Achamos que há qualquer coisa para dizer na gastronomia, e ficar um ano inteiro sem dizer nada, sem fazer acontecer nada, não fazia sentido. Surgiu uma energia. Dar o palco aos subchefs dos melhores restaurantes do mundo é inédito. Não há outro evento assim. Eles encontram aqui um palco e vibram com isso.” Decidiram continuar.

Excêntrico?

Nesta nova fase, o Sangue na Guelra inclui uma novidade: cada chef foi desafiado a apresentar um prato que tenha uma ligação com Lisboa. João Rodrigues pegou na sardinha, que apresentou só ligeiramente braseada, no pimento (que recheou com batata) e no pão frito, serviu-os em cima de um azulejo da Viúva Lamego e chamou-lhe Alfama.

Quanto ao resto do menu, o melhor é deixar que seja ele mesmo a explicá-lo: “A ideia era fazer um jantar descontraído, em que pudéssemos celebrar Lisboa e onde se mostrasse a identidade do chef. Tentámos encontrar um sítio onde isso pudesse acontecer e que nos criasse algumas dificuldades, para sairmos da nossa zona de conforto.” O Vestigius, que é um wine bar e não tem uma cozinha de restaurante era “o sítio ideal”.

“A ideia do grelhador já tinha de trás, porque estamos na altura dos grelhados, desta comida de rua”, explica João Rodrigues. “Outra ideia era aproveitar a proximidade que eu tenho com a Tasca do Joel, em Peniche, e com um fornecedor de peixe de lá, o Nuno Anastácio, e o objectivo era trazer produtos que não fossem tão conhecidos, como a moreia, a raia, o rascasso, que é um peixe maravilhoso que está um pouco esquecido.”

Foi precisamente com um amuse bouche de torresmo de moreia e raia frita (apresentados num cone de papel como verdadeira comida de rua) com maionese de tomate e azeitona que começou o jantar. “A moreia, por exemplo, foi uma estreia para nós. É pendurada por um gancho e com uma serapilheira tentamos tirar todos os ossinhos, porque ela tem muitas espinhas, para depois podermos tirar a pele à vontade. A pele tem uma camada de gordura enorme, que faz com que demore muito tempo a secar. Vê-se geralmente a pele pendurada nuns paus a secar. Nós colocámo-la num desidratador para acelerar o processo, e mesmo assim demorou quatro dias até a gordura secar toda, ao ponto de a podermos fritar para ela insuflar.”

Outra “estreia absoluta” foi o mexilhão em escabeche, em que um pequeno truque, usando obulato (uma lâmina transparente feita de amido de batata e lecitina de soja), permitiu imitar a concha e torná-la comestível. Divertida, também, foi a ideia de apresentar uma casca de cerejeira que, afinal, era falsa e feita de grão-de-bico, com um gel avinagrado de cereja. Seguiu-se um tártaro de chicharro, rábano e ameixa, e depois o prato Alfama, em homenagem a Lisboa.

O rascasso foi a estrela do prato de peixe, onde surgiu acompanhado por um carabineiro e amêijoas. E, por fim, veio o prato de carne, novilho com 21 dias de maturação, o que dá à carne uma profundidade e uma complexidade muito maiores do que é habitual, grelhado no tal grelhador que tínhamos visto lá fora, e acompanhado por uma salada de tomate biológico vindo da Quinta do Poial, em Azeitão. “A carne grelhada com a salada de tomate, tudo isso tem muito a ver comigo”, diz o chef. A sardinha assada, o pimento, o azulejo... sou de Lisboa, a ideia foi trazer um pouco o que eu sou.”

Uma experiência diferente da que tem todos os dias no Feitoria, sem dúvida. “A grande diferença, e que era o que procurávamos, era não termos aqui todas as modormias, estufas, vários tipos de fornos, tudo o que nos permite controlar as temperaturas. Viemos sem essas bengalas, viemos para cozinhar e para nos divertir.”

Mas para chegar aqui há todo um trabalho prévio, em que Paulo Barata acompanha os chefs, ajudando-os a descobrir os melhores produtos. “O nosso trabalho é motivá-los, é chamá-los a participar nisto de outra maneira. Com o João Rodrigues fui até Peniche, estivemos na Tasca do Joel, já estamos a planear ir às Berlengas, o João já começou a pensar em arranjar uns ovos de gaivota. São coisas muito interessantes que surgem. Com o Yoji, ele ficou em nossa casa a dormir e eram umas oito da manhã e ele já estava a bater à porta do meu quarto para irmos ao mercado 31 de Janeiro, fomos ver o peixe que a Açucena vende, daí fomos para a [loja de produtos biológicos] Miosótis, sempre que podemos levamo-los a ver coisas. O que é fantástico quando trabalhas com estes chefs é também ver a capacidade de improviso deles, quando decidem usar este ou aquele produto, alguns que nem conheciam antes.”

Os jantares Origens — que têm um custo de 60 euros por pessoa e são para um grupo de 30 pessoas — vão continuar, agora com uma regularidade de três em três meses, e o próximo será já em Setembro, também no Vestigius (para saber a data certa, o melhor é ver no Facebook do Sangue na Guelra). Ainda não se sabe quem será o chef convidado, mas entre os próximos nomes estão os de David Jesus, subchef de José Avillez, no Belcanto, o suíço Sven Wassmer ou Matteo Ferrantino, subchef do Vila Joya, no Algarve.

E, entretanto, Ana e Paulo preparam-se para ir à Dinamarca, no final de Agosto, para a próxima edição do festival MAD, organizado pelo Noma (considerado o melhor restaurante do mundo na lista do World’s 50 Best), que, confessam, é desde o início uma fonte de inspiração para o simpósio que iniciaram este ano no Sangue na Guelra. “Para 2015, vamos pegar no simpósio, queremos algo ainda mais consistente. É um palco para os pequenos produtores, artesãos, pessoas ligadas à gastronomia, para se quebrar esta ideia que sentimos que ainda está muito na cabeça das pessoas, de que isto é tudo muito excêntrico, extravagante”, explica Ana. “As pessoas têm que começar a ver os outros lados, tudo o que existe à volta de um grande jantar. Há tanta coisa interessante que se pode fazer em torno da comida. Sei que as pessoas que vão ao MAD vêm de lá arrebatadas. E por que é que nós não podemos fazer isso aqui? Também podemos. Podemos tudo.”

--%>