Fugas - restaurantes e bares

Guia Michelin, uma longa história de rigor, exigência e credibilidade

Por José Augusto Moreira e Fortunato da Câmara

Para a restauração mundial, o guia assume uma quase veneração de 'Bíblia'. Mas como conseguiu a Michelin tanto poder?

Michelin 2015: As novas estrelas que iluminam a cozinha portuguesa
Os chefs que mantiveram as estrelas a brilhar    

Apesar do enorme impacto mediático, do prestígio e reconhecimento de que gozam hoje os restaurantes galardoados com as estrelas do Guia Michelin, este é um mundo ainda envolto em algum mistério. A questão é que, para lá de todas as possíveis críticas, este bem poderá ser o factor que mais tem contribuído para a credibilidade e importância do guia que em 1900 começou a ser distribuído em França e hoje tem impacto global.

Mas o facto de os seus inspectores actuarem protegidos pela mais completa independência, sempre debaixo do anonimato e pagando as suas contas, e de a sua publicação ser inteiramente assumida pela histórica fabricante de pneus, sem qualquer tipo de apoios ou patrocínios, constitui factor de reforçada credibilidade face a outras publicações, eventualmente de maior ou idêntica força mediática mas sem o mesmo prestígio e credibilidade. 

É certo também que, nos últimos anos, a Michelin tem tentado comunicar um pouco mais acerca da forma como o guia é elaborado. Depois do lançamento das edições norte-americanas, alguns inspectores locais foram autorizados a participar num documentário acerca do impacto que as estrelas têm num restaurante, sendo entrevistados sob anonimato. O mesmo método foi utilizado este ano para que alguns inspectores fossem jurados numa das edições do programa Top Chef em França. No caso ibérico, a maior abertura aconteceu em 2011, quando Fernando Rubiato (director do guia à época) esteve no Peixe em Lisboa. 

Durante a apresentação que fez no evento, Rubiato revelou que cada um dos doze inspectores faz cerca de 30.000km por ano e viaja durante três semanas por mês na região que lhe está atribuída. Em seguida regressa aos escritórios de Madrid para entregar os formulários com as informações recolhidas nos hotéis e restaurantes que visitou. Anualmente, cada inspector faz cerca de 150 dormidas e 250 refeições, sendo a totalidade das despesas suportadas pela empresa francesa. 

Os restaurantes podem preencher um formulário a requisitarem a visita do guia, que pode ou não corresponder ao pedido, no entanto a avaliação é feita sob anonimato por uma pessoa sozinha. No final da refeição, e depois de pagar a conta, o inspector pode identificar-se para verificar a cozinha e as restantes instalações, mas as visitas seguintes, a existirem, já serão feitas por outros avaliadores e sob anonimato total. A atribuição das estrelas não é uma decisão isolada de um avaliador, sendo tomada de forma colegial pelo grupo de inspectores. Em casos mais complexos, como por exemplo a atribuição da terceira estrela, pode haver refeições com vários inspectores em simultâneo, divididos por pequenos grupos em mesas separadas. No guia ibérico, as avaliações finais são feitas em Julho de cada ano para vigorarem no ano seguinte.

Duas estrelas em 1936

O primeiro guia foi apresentado em1900, durante a Exposição Universal de Paris, sendo que até meados do século passado era visto mais como um auxiliar para os motoristas e chauffeurs, com informação sobre oficinas mecânicas, locais de assistência e indicações de hotéis e restaurantes. 

Há na Galiza um interessante coleccionador (www.cancela.org) com exemplares de quase todos os guias, através dos quais é possível ver a evolução da forma como era prestada e valorada toda a informação sobre restaurantes e hotéis. No início, seria fornecida por entidades locais como o Clube Automóvel de França ou o Real Automóvel Clube de Espanha, para os respectivos países, desconhecendo-se embora de onde vinham as informações sobre Portugal. 

É no guia de 1929 para Portugal e Espanha que se encontram as primeiras referências com estrelas para restaurantes do nosso país, se bem que num esquema ainda diferente do actual. Num sistema que ia de uma a cinco estrelas e em que estas tinham um formato de cinco pontas, explicando as legendas tratar-se de “restaurantes que teem fama pela sua boa cosinha”. 

Entre os restaurantes portugueses indicados nesse guia de 1929, há dois que aparecem assinalados com uma estrela: Hotel Santa Luzia, em Viana do Castelo, e o Hotel Mesquita, em Vila Nova de Famalicão. O facto de serem ambos minhotos e, como tal, chegados à Galiza, pode significar que as indicações poderiam ser também fornecidas pelo clube automóvel de Espanha.

A grande mudança dá-se, no entanto, a partir de 1933, quando a Michelin cria a figura dos inspectores anónimos, sendo estes que passam então a fornecer e a responsabilizar-se por toda a informação. As estrelas passam a ter o significado e formato actual — de uma três e simbolizando o rebentamento de uma bolha de champanhe — e os inspectores são por essa época todos franceses. 

Embora já houvesse algumas em França, é no guia de 1936-38 que pela primeira vez surgem as duas estrelas para Portugal e Espanha. Entre elas está um restaurante português, O Esconddinho, no Porto, que ainda hoje funciona, com o idêntico estilo e nas mesmas instalações da Rua de Passos Manuel. Com ele, mais quatro restaurantes com uma estrela, um em Setúbal, o Club Naval, e os restantes em Lisboa: Petermann, Chave d’Ouro e Avenida.

Com o período seguinte de Guerra Civil em Espanha e a II Guerra Mundial, o guia para a península só voltou a partir de 1973 e com periodicidade anual. Nesse ano não houve qualquer estrela para restaurantes portugueses, mas voltariam no ano seguinte com o Portucale (Porto), O Pipas (Cascais), Aviz e Michel (Lisboa) a serem galardoados com uma estrela. É a partir deste recomeço que a Michelin parece valorizar o seu histórico de atribuição de estrelas, com o destaque que é mais ou menos conhecido até aos dia de hoje. 

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