Mas essa preferência tem uma razão de ser, e esse é o pretexto para esquecermos os utensílios e mergulharmos na investigação que Fátima fez sobre a história do café e da relação de Portugal com ele. “Nós éramos grandes produtores de robusta em Angola, daí vem a nossa fixação em cafés intensos. Em Portugal, durante muito tempo o robusta entrava em grande quantidade nos lotes.”
Num lote, o robusta tem a função de dar corpo e intensidade. “É um café que se dá bem à torreira do sol, é muito menos exigente na produção.” A riqueza de aromas é dada pelos arábica, “cafés muito ricos, geralmente cultivados em altitude, nas encostas, e que crescem à sombra, mais lentamente, tornando-se mais complexos”.
O livro Conversas de Café, resultado de quase dois anos de investigação, começa com um capítulo mais geral sobre esta bebida que, segundo um provérbio turco, deve ser “preta como o inferno, forte como a morte e doce como o amor”. E aí Fátima lembra que “o café é negro também pela sua origem africana” e que o seu padrão de produção e consumo consolidou-se no século XIX desta forma: “As regiões situadas entre os trópicos produzem-no e os países desenvolvidos comercializam-no e consomem-no, ficando com a parte de leão dos lucros.” Portugal faz parte desta história, e teve nela um papel importante, como contam os três capítulos seguintes.
A importância das colónias
Fátima destaca a importância das investigações “únicas no mundo” feitas em Portugal, pelo Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro, Junta de Investigações do Ultramar, (hoje Instituto de Investigação Científica Tropical). Mas se é surpreendente este conhecimento num país que não produz café no seu território, ele explica-se, obviamente, pelas colónias.
“Esta história do cultivo do cafeeiro nas nossas colónias estreou-se em Setecentos”, escreve Fátima Moura. “Não houve território português onde não tivesse sido ensaiada a cafeicultura, desde as regiões vizinhas da Madeira e dos Açores às mais longínquas, como Timor. Em alguns deles rivalizou com a cana-de-açúcar e o cacau, com os quais alternou ciclos de riqueza e de abandono. Simultaneamente, Portugal forneceu também a mão-de-obra que iria criar riqueza nas plantações da rubiácea: numa primeira fase, escravos nas colónias, mais tarde colonos da Metrópole.”
E porque não seria possível falar de tudo isto em detalhe, Fátima optou por contar a história através de três países e de três famílias, acompanhada por muitas imagens das diferentes épocas. No Brasil, é a família Junqueira que nos guia numa viagem que vai do Minho ao oeste paulista e que começa no século XVIII. É através da epopeia dos Junqueira que entramos na história de como, sobretudo a partir do século XIX, o café começa a transformar o Brasil, substituindo em grande parte a cana-de-açúcar. O entusiasmo pelo café contagiou inclusivamente a corte de D. João VI e conta-se até que o imperador costumava trazer nos bolsos do colete alguns grãos da mágica planta.
“Quis que o livro se lesse um pouco como um romance”, diz Fátima Moura. “Ao contrário do que acontece em Portugal, onde a documentação está pouco estudada, no Brasil há muita investigação sobre café, por isso é fácil ir buscar informação. E os Junqueira são muito interessados, mantiveram muita coisa, e ainda hoje têm fazendas e milhões de pés de café.” Interessava-lhe dar não só o contexto histórico, mas descrever a vida quotidiana nas fazendas e roças, o que se comia, o que se fazia nos tempos livres.
Em Angola descobrimos esta realidade através da família Seixas, e dos pioneiros Francisco Seixas e o sócio Maurício Marques da Paixão. E em São Tomé e Príncipe, os nossos “anfitriões” são a família Mantero — a autora descreve no livro o momento em que Teresa Mendonça Alves, sobrinha-neta de Francisco Mantero, abriu, à sua frente e pela primeira vez, uma caixa de folha pintada com quase 100 anos que tinha pertencido ao tio-avô e que “guardava o último café trazido por Francisco Mantero das suas roças são-tomenses”.
O café produzido nas colónias era exportado para Portugal, que fazia a sua comercialização e a torrefacção — e esse é o pretexto para outra viagem ao passado, desta vez com a Delta, a vila de Campo Maior e o contrabando de café na fronteira entre Portugal e Espanha: “Ao longo de duas centenas de anos, a abundância de café importado verde das nossas colónias criou em Portugal o mercado para que surgissem as torrefacções, embora a maior de todas, a Delta, do Grupo Nabeiro, tenha a sua história ligada a uma actividade que durante várias décadas ocupou cerca de 90% da população campomaiorense: o contrabando.”
Foi com esses blends criados em Portugal, e integrando uma boa dose do robusta de Angola, que o gosto português se foi formando. E ainda hoje é o café forte o preferido dos portugueses, cada um dos quais consome, em média, quatro quilos por ano. Mas Fátima Moura acredita que os consumidores vão tornar-se mais exigentes porque, afinal, como aprendemos neste livro (que ensina inclusivamente a fazer a prova, identificando corpo, doçura e acidez), cafés há muitos e cada um deles é um mundo.