A que cheira uma glândula de castor? A que sabe um gin com formigas? Como se podem aproveitar as entranhas de um peixe? Roberto Flore e Josh Evans estão no Nordic Food Lab (NFL), em Copenhaga, para encontrar respostas para estas perguntas. E, sobretudo, para nos tentar mostrar que há muito mais mundo comestível do que parece à primeira vista. “Comermos sempre a mesma paleta de sabores torna-nos burros. É como termos uma grande biblioteca cheia do mesmo livro”, diz Josh.
Os dois investigadores vieram a Portugal a convite do Sangue na Guelra, evento satélite do festival Peixe em Lisboa, e antes da apresentação que fizeram no simpósio no auditório no Terreiro do Paço, conversaram com a Fugas na 1300 Taberna, na LX Factory, sobre o conceito de “delicioso” e como podemos transformar coisas menos óbvias em coisas “deliciosas”.
Explicaram o que fazem no NFL, um laboratório que nasceu em 2008 das interrogações de René Redzepi, o chef do Noma, de Copenhaga, considerado o melhor restaurante do mundo. Josh, que é canadiano, chegou em 2012, e Roberto, que é hoje o responsável do NFL e também cozinheiro, chegou em 2013, vindo da sua terra, a Sardenha.
Procuram sabores novos, é isso? “A questão do novo é complicada e, por isso mesmo, interessante”, responde Josh. “O que é novo para umas pessoas não o é para outras. O que se passou nos últimos anos nos países nórdicos é que foi redescoberta uma série de coisas que em algum momento tinham sido esquecidas, como as plantas selvagens. E depois há outras coisas que não são novas para a Humanidade mas são-no para a população daquela região, como é o caso das algas, que os nórdicos não tinham tradição de comer.”
Na apresentação que fizeram no simpósio do Sangue na Guelra, Roberto citou precisamente o exemplo das algas, lembrando que só usamos uma pequena parte das que existem, as que estão mais acessíveis. “Deveríamos ir ao fundo do mar para encontrar as algas na sua melhor forma. Usarmos só as que chegam à praia é como se fôssemos a um pomar e olhássemos apenas para a fruta que está caída no chão e já demasiado madura.”
Um dos projectos em que o NFL está a trabalhar há já algum tempo é o da transformação de insectos em comida “deliciosa”. Trata-se também de algo que para uma parte da Humanidade é alimento, e para outra não. Mas às vezes as fronteiras não são tão definidas como parecem. Veja-se o casu marzu, um queijo da Sardenha, a ilha em que, por coincidência (ou talvez não), Josh e Roberto se conheceram (precisamente, porque Josh aí tinha ido à procura deste queijo).
Roberto explica: “É um queijo que também envolve um tipo de insecto. A fermentação acontece dentro do queijo, os gases produzidos partem a casca, e nesse momento uma mosca específica põe os ovos dentro do queijo, estes transformam-se em larvas, as larvas começam a comer o queijo e há todo um processo que o leva de duro a cremoso. Comemos o queijo no momento certo de maturação e as larvas ainda estão lá dentro. Mas as pessoas pensam sempre mais no queijo do que nos insectos.”
A forma como trabalham este queijo é também um bom exemplo de como a pequena equipa deste laboratório nórdico quer explorar a diversidade e a especificidade. “Trabalhamos a partir da ideia de que cada insecto tem um gosto próprio”, explica Roberto. “Dizer insecto é o mesmo que dizer carne, sem distinguir se é vaca, ovelha, cabra ou galinha.” E, seja com insectos ou outros produtos, tentam “perceber se não os comemos porque não são comestíveis, ou porque não temos uma relação histórica com esta comida”.
Esta pesquisa de sabores por vários pontos do mundo é um dos trabalhos do NFL. Depois vem a tentativa de transformação. Vejamos então o que nos reservam os frasquinhos que Josh e Roberto trouxeram com eles. Um deles é um gin feito com formigas – uma pesquisa que juntou o NFL e a The Cambridge Distillery e que resultou num produto que já foi comercializado, o Anty Gin. A ideia foi utilizar a formica rufa, um tipo de formiga que existe nas florestas sobretudo no hemisfério norte e que produz um ácido fórmico com um aroma muito próprio que, neste caso foi usado no gin.
Josh: “Pensámos que tínhamos uma coisa com este sabor amargo extraordinário, que tem a ver com o mecanismo de defesa das formigas. E o que perguntámos é como podemos tornar este sabor acessível às pessoas que possivelmente não irão ao bosque apanhar uma formiga e comê-la. O gin é um bom exemplo de um contexto que nos é familiar e que permite à formiga brilhar.”
Noutro frasquinho trazem uma amostra de molho de peixe feito no NFL e à qual, para facilitar o reconhecimento, chamaram garum, o nome que os romanos davam ao seu famoso, e muito apreciado, molho feito das vísceras do peixe deixadas a fermentar ao sol. “Não reivindicamos a invenção do molho feito com peixe fermentado”, sublinha Josh. “Os romanos e os habitantes do sudeste asiático fazem-no há muito tempo. Mas usamos uma técnica um pouco diferente e talvez eles não o façam com o carapau do Norte da Europa, como nós. O objectivo é disponibilizar a receita, como fazemos com todas as nossas pesquisas, através do nosso site e de palestras. É um bom molho e um conhecimento que podemos partilhar.
Outro exemplo de uma investigação que o NFL partilha no seu site (é uma organização sem fins lucrativos) tem a ver com o uso do sangue dos animais que, dizem, “tem uma longa história culinária na Europa, apesar de recentemente ter sido negligenciado”. Dentro da lógica de “(re)valorizar o que é desprezado e esquecido”, foram estudar a composição do sangue, os seus potenciais aproveitamentos, e concluíram que, dadas as suas propriedades coagulantes, pode ser usado como substituto dos ovos (têm composições de proteína semelhantes).
Gelado de sangue
Uma das utilizações possíveis é em doces, o que, argumentam, poderá ser útil para pessoas com intolerância aos ovos, além de ajudar a combater a anemia. Inspirados por esta conclusão, criaram um “gelado de sangue”, “merengues de sangue”, panquecas com massa com sangue e um bolo de chocolate com sangue. O sabor a ferro é o elemento mais complicado, mas tentaram compensá-lo com outros sabores e, garantem, obtiveram resultados positivos nas provas sensoriais.
E essa pistolinha que trazem aí com um líquido castanho? Josh sorri. Trata-se de castóreo, extracto de glândula de castor usada por este para impermeabilizar a sua pelagem. Lança um pequeno borrifo para o ar e rapidamente o cheiro invade tudo, entrando-nos pelo nariz e instalando-se aí. É um aroma estranho, difícil de definir, mas Josh confessa que criou o hábito de o cheirar e que gosta até que o saco onde o transporta já tenha ganho esse cheiro. E serve para quê? Bem, explica Roberto, não será para pôr na comida, mas por que não lançá-lo no ar a acompanhar um prato que pretenda representar a floresta?
“Este é um produto que já é usado em alguns perfumes e para pôr, em spray, sobre charutos, para lhes dar um aroma de folhas secas”, continua Roberto. “Quando fazemos comida podemos interagir com vários elementos e um deles pode ser o cheiro de um animal que nem sequer está no prato. O que é importante é abrir o debate relativamente a uma coisa tão íntima como é pôr alguma coisa na boca e comê-la, torná-la parte de nós.”
O que Josh e Roberto querem é “tornar as pessoas mais curiosas” e também “fazê-las perceber que o que comemos pode ter muitas implicações, porque se só comemos uma coisa a nossa agricultura só vai produzir uma coisa”.
Tudo pode servir para alargar esta nossa visão do mundo comestível – e, preferencialmente, delicioso. Claro que, admitem, “a palavra ‘delicioso’ é como a palavra ‘beleza’, não existe uma definição única e universal”. O importante é que a tal paleta de sabores seja cada vez maior. No fundo, que a nossa biblioteca esteja cheia de livros diferentes, porque ler sempre o mesmo é, temos que o reconhecer, um aborrecimento.