Fugas - restaurantes e bares

  • Kamilla Seidler
    Kamilla Seidler Miguel Manso
  • Na cozinha do Feitoria, em Lisboa
    Na cozinha do Feitoria, em Lisboa Miguel Manso
  • Cañihua, um dos pratos que confeccionou por ocasião da Rota das Estrelas
    Cañihua, um dos pratos que confeccionou por ocasião da Rota das Estrelas Paulo Barata

Continuação: página 2 de 3

Há uma dinamarquesa loira atrás dos fogões em La Paz

Não competir com a avó 

Mas, tal como acontece, por exemplo, no Peru (outro país da América do Sul que vive uma revolução gastronómica) os próprios bolivianos desconhecem muitos dos seus produtos. “Servimos às pessoas em La Paz muitos ingredientes vindos da Amazónia que elas não imaginavam que existissem na Bolívia.” 

Identificar o produto é, no entanto, apenas o início da aventura. “A nossa base de partida é perceber como é que ele é usado tradicionalmente. Se é usado para sumo e nós ao tentarmos cozinhá-lo lhe destruímos os sabores, tudo bem, mantemo-lo cru. Se eles o cozinham, então queremos saber se o fritam, se o cozinham em sal, escalfado, ou de outra forma. É partir do zero e tentar tudo o que é possível.” 

Mas mesmo para quem cozinha profissionalmente há anos e já passou por alguns dos melhores restaurantes do mundo, cozinhar na Bolívia pode ser um desafio. Kamilla nunca imaginara que por causa da altitude a água fervia a uma temperatura mais baixa. “Há menos oxigénio no ar e a pressão é maior. Temos muitos problemas para fazer pão, que não cresce bem porque o glúten não é activado. A massa tem que ter muito mais humidade. Há factores que é preciso compensar, por isso acrescentámos mais 60% de água nas nossas receitas”. 

O arroz, por exemplo, revelou-se um problema. “Quando estamos ao nível do mar a água ferve a 100º, que é uma temperatura boa para quebrar o amido do arroz. Mas em La Paz ferve aos 86º — não é suficientemente alto para cozinhar o arroz, mas se deixamos mais tempo ele torna-se puré no exterior. Usamos muito panelas de pressão, sous vide, cozinhamos com sal porque ajuda a criar vapor e os alimentos cozinham nos seus próprios sucos.” 

Hoje percebe como no início foi “ingénua” ao pensar que uma receita que fazia há anos ia sair igual em La Paz. Mas tem aprendido muito também com os próprios estudantes, jovens que vêm de famílias desfavorecidas. “É uma grande mistura. Há os que costumavam viver no campo e mudaram-se, são as novas gerações da cidade. Outros já cresceram na cidade, outros são das regiões amazónicas da Bolívia. Todos com poucos rendimentos, o que é uma condição para poderem ter uma bolsa para estudar aqui.” 

A ideia é uma formação muito prática. “Muitas vezes as pessoas confundem os conceitos porque chegam ao restaurante e perguntam onde está a escola. O restaurante é a escola.” O modelo (aqui são 18 meses) é inspirado no dinamarquês, em que há aulas de inglês, higiene, nutrição, etc., e depois o serviço. “Acho que é única forma eficaz de aprender. Se se quer ser mecânico tem que se arranjar o carro.”  

Uma refeição no Gustu é uma descoberta dos sabores bolivianos, que têm muito como base as malaguetas e os pimentos, doces e picantes. “Fizemos um teste para uma das grandes instituições que no país tenta preservar a biodiversidade e provámos 57 pimentos diferentes. É muito interessante, há de tudo, desde os que sabem a maçã e são um pouco picantes aos muito doces, passando pelos que são loucamente picantes.” 

Na Rota das Estrelas no Feitoria, Kamilla apresentou um prato delicioso, exemplo de uma comida de conforto com ingredientes bolivianos. “Fala-se muito na quinoa, talvez em excesso porque [com o sucesso que teve no Ocidente] actualmente na Bolívia as pessoas já não têm dinheiro para a comprar. Por isso trouxemos o amaranto, que é outro grão igualmente nutritivo, com muita fibra e vitaminas.” 

--%>