Se, de repente, começarmos a ouvir falar cada vez mais na gastronomia da Bolívia é quase certo que algures na história aparecerá uma jovem dinamarquesa de cabelos loiros, pele muito clara e voz calma: Kamilla Seidler, a “dinamarquesa dos Andes” como lhe chamou o diário espanhol El País.
Quando Claus Meyer — chef, empresário, co-fundador do Noma (considerado o melhor restaurante do mundo na lista do World’s 50 Best) e, juntamente com René Redzepi, o grande responsável pela chamada Nova Cozinha Nórdica — desafiou Kamilla e o chef venezuelano Michelangelo Cestari a abrirem um restaurante num país da América do Sul, os dois não demoraram muito a aceitar.
“Havia uma série de países no plano original, mas acabámos por escolher a Bolívia por vários factores, a biodiversidade, a segurança, o facto de ser o coração da América do Sul”, conta Kamilla à Fugas, durante uma passagem por Lisboa para participar, a convite do chef João Rodrigues, numa etapa da Rota das Estrelas no restaurante Feitoria no Hotel Altis Belém, Lisboa.
E assim, em 2013, Kamilla, que se formou, entre outros, com o chef basco Andoni Aduriz do restaurante Mugaritz, fez as malas e partiu para a América do Sul — onde nunca tinha estado. “Não sabia muito”, confessa. “Mas sabia que todos os meus amigos que lá tinham ido naquelas viagens de mochila às costas depois de acabarmos a escola voltavam dizendo que a Bolívia era o país mais bonito que tinham conhecido, apesar de muito pobre.”
Tudo começou, portanto, “de forma louca e muito orgânica”. Para se falar do projecto do Gustu (assim se chama o restaurante, em La Paz, a capital boliviana) é preciso explicar primeiro que se trata de um restaurante-escola. A proposta de Claus Meyer era criar um projecto de desenvolvimento social ligado à comida e daí nasceu o Melting Pot Bolivia, que tem o seu centro no Gustu.
“Quando chegámos já tinham sido escolhidos os primeiros alunos”, recorda Kamilla. “Foi chegar e começar a trabalhar como loucos desde o primeiro instante, a tentar conhecer um novo país, as pessoas, a mentalidade e definir o que íamos fazer.” Foi, literalmente, começar do zero, tentando perceber que produtos existiam na Bolívia e qual o potencial de cada um. “Portanto, vocês têm a selva, o planalto, produção de vinho, de licores, ok, temos uma base muito boa para um movimento gastronómico.”
Ao mesmo tempo que Kamilla e Michelangelo descobriam esse mundo de novos produtos era preciso construir o restaurante, “que só tinha as primeiras paredes”. “Toda a gente participou, os estudantes carregavam tijolos… foi uma espécie de conto de fadas com muito trabalho duro.”
Os dois chefs fizeram algumas viagens pelo país para começar a identificar os produtos. “Precisámos de nos sentar com as pessoas e perguntar ‘quais são as vossas tradições?’, ‘como é que comem isto habitualmente?’, ‘ah, isto serve para fazer sumo’.” Às vezes, a pergunta de Kamilla era apenas se um determinado produto era uma fruta ou um vegetal. E as vendedoras do mercado respondiam-lhe que era muito bom para os rins. Sim, mas o que é?, insistia a dinamarquesa. Hoje, o Gustu já tem perto de mil produtos na sua lista de compras e mesmo assim não será “nem dez por cento” do que existe no país.