Algumas das mais famosas discotecas de Lisboa, situadas no Cais do Sodré, receberam ordem de despejo para que o prédio de que são inquilinas sofra obras de recuperação e remodelação para se transformar num hotel. Trata-se do Tokyo e do Jamaica e do bar Europa, referências da noite lisboeta há mais de 40 anos. Os proprietários sublinham a enorme degradação do edifício e garantem que o assunto foi tratado "com muita antecedência e lisura", estando garantida a permanência de uma das discotecas.
Segundo comunicado do dono das discotecas Jamaica e Tokyo, Fernando Pereira, a denúncia dos contratos de arrendamento tem efeitos a partir de 14 de Abril. Na carta do advogado representante dos senhorios, evoca-se a nova lei das rendas que autoriza os senhorios, em casos em que é necessário fazer obras de remodelação ou restauro profundos, a fazer despejos.
Na passada quinta-feira, os donos das discotecas e bar escreveram à Câmara Municipal de Lisboa para que esta “não considere a requalificação do edifício como uma obra de remodelação profunda que obrigue à desocupação do locado, conforme previsto na nova lei do arredamento e nas alterações ao Código Civil, impedindo desta forma que as discotecas sejam obrigadas a sair, considerando as mesmas que tudo não é mais do que uma forma hábil de o senhorio se livrar destes espaços que desvalorizam o imóvel, já que em 2009 os mesmos senhorios fizeram aprovar junto da autarquia um projecto que procedia à reabilitação do edifício sem tocar nos espaços comerciais”. E sugerem métodos de recuperação do edifício que permitem manter as portas abertas.
A autarquia agendou, entretanto, um encontro entre os inquilinos e os promotores imobiliários para o próximo dia 18 de Março.
Fernando Pereira adianta que a intenção é a de ali fazer um hotel, mas o projecto contempla a manutenção do Jamaica no mesmo espaço, já com uma renda actualizada — actualmente, estes estabelecimentos estão a pagar rendas entre os 200 e os 400 euros — e contrato de cinco anos. Mas, para que tal aconteça, os senhorios querem “que o Jamaica desista de um processo que tem contra eles (pedido de indemnização de 200 mil euros por causa do encerramento quando se deu a derrocada)” e entreguem a loja em bruto, “tendo o Jamaica que fazer todas as adaptações necessárias para voltar a funcionar”. Pedem ainda “que o Tokyo saia sem fazer barulho e desista também de um processo com um pedido de indemnização de quase 60 mil euros, também por causa do encerramento forçado devido à derrocada no edifício”, em 2011.
Em Maio de 2011, uma parte da estrutura interior do prédio em que estão instalados estes três espaços cedeu e estes tiveram de ser encerrados. Só reabriram em Setembro e exigiram ser ressarcidos pelos custos de terem tido as portas fechadas durante quase todo o Verão.
Aliás, na carta enviada à câmara, os proprietários dos estabelecimentos tecem duras críticas ao “desleixo” com que o senhorio sempre terá tratado este prédio de seis andares entre a Rua Nova do Carvalho — a chamada rua cor-de-rosa —, a Rua de S. Paulo e a Rua do Alecrim.
O edifício está, com excepção dos bares, devoluto há mais de uma década, conta Fernando Pereira. Os últimos a saírem foram o restaurante A Palhota e uma casa de material eléctrico, ambos com acesso a partir da Rua de S. Paulo. Na altura da derrocada, em 2011, ainda existia uma casa alugada mas o inquilino já não moraria ali.
Quanto ao valor das rendas, Fernando Pereira diz que foram várias as vezes que tentaram negociar com os proprietários — que são 28 — para que fizessem obras e aumentassem os valores. "Tentámos resolver os problemas inúmeras vezes, sempre dissemos que pagaríamos mais mas nada foi feito", relata, acrescentando que chove no Jamaica, um estabelecimento que se encontra no R/C de um prédio de seis andares.
Segundo o projecto que consultaram na câmara, ali nascerá um hotel, pela mão de um grupo francês que está a fazer uma outra unidade hoteleira no Largo do Corpo Santo, ali mesmo ao lado, adianta Fernando Pereira. O projecto mantém a volumetria, pois encontra-se na zona histórica, embora cresça dois pisos, os mesmos que foram demolidos coercivamente pela câmara na altura da derrocada. Não haverá estacionamento. A autarquia já aprovou a proposta arquitectónica, faltando agora a aprovação por parte das especialidades.
Obras urgentes
Diogo Tavares de Carvalho, advogado dos proprietários e também ele dono de uma pequena fracção do prédio, explica que as obras no edifício são urgentes e que não há forma de serem feitas sem que os inquilinos saiam. O edifício é propriedade de 28 pessoas e, desde que o herdaram, em 1974, tem sido muito difícil o consenso, adianta.
Até que, em 2000, perante a enorme degradação daquele quarteirão, decidiram avançar com a reabilitação. Como não tinham capacidade financeira, estabeleceram um acordo com um construtor, que ali iria fazer apartamentos para posteriormente se vender o prédio por fracções para que a divisão entre os herdeiros fosse mais fácil.
Mas veio a crise e o construtor deixou de ter acesso a crédito. Encontraram mais recentemente novos parceiros que optaram por uma unidade hoteleira. "Neste projecto, deixamos um espaço para instalação de uma das discotecas, em condições a acordar e com renda progressiva até atingir os preços de mercado", diz o advogado, defendendo que seja feito um rateio entre os três espaços.
"Ainda tentámos fazer um projecto só da Rua do Alecrim para cima, deixando as discotecas, mas este é um prédio pombalino, em gaiola e assente em estacas, seria uma obra impossível", acrescenta, lembrando que a integridade do prédio está há muito posta em causa, uma situação que se tem vindo a deteriorar com as obras recentes na zona. "As estacas em que assenta, que estavam dentro de água — o que as inchava e as mantinha —, estão agora secas devido às muitas obras ali feitas que cortaram o fluxo da água, como o metro ou a estação fluvial, tendo já começado a estalar", afirma.
O advogado não confirma se o promotor do projecto é um grupo francês, adiantando apenas que o promotor do projecto que deu entrada na câmara é também co-proprietário.
O Jamaica e o Tokyo são dos espaços mais icónicos da noite lisboeta. Nasceram como bares de alterne na altura em que o Cais do Sodré se enchia de marinheiros mas, no final dos anos 70, começam a dinamizar a movida da cidade, captando novos públicos e novos músicos. Atingiram o seu boom na década de 1980 e é ainda esta geração que ali acorre fielmente aos fins-de-semana.